“O humano é o protagonista da era digital”

Marcelo Tas aponta o papel fundamental da escola nestes tempos de revolução tecnológica

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Bem antes da chegada da era digital e de seus mantras que invocam transformação, Marcelo Tas já se desafiava a pensar fora das várias caixas em que o mundo tentava acomodá-lo. Foi assim tanto na quadrada sala de aula com ares medievais na época de aluno, quanto no caixote da TV ainda analógica.

E a resultante dessa inquietude avessa aos “ângulos retos” se fez notória: ser referência num contexto multimídia e de multifunções como apresentador, colunista, comentarista, comunicador, ator, jornalista, roteirista, produtor, influenciador digital e professor. Sua carreira, aliás, dialoga com o eixo da palestra que fez em Vitória, “Inovação: a criatividade na era digital”, durante o Encontro de Pais e Mestres 2019, promovido pela Rede Gazeta no último dia 26 de setembro.

Nesta entrevista, este paulista de Ituverava formado em Engenharia Civil e prestes a completar 60 anos fala do painel cada vez mais digitalizado do aprendizado e do trabalho, da importância do protagonismo humano e da profusão de informações: “A escola tem de ocupar o lugar de curadoria e de qualificação desses conteúdos; ser a grande provocadora de debates.”

Foto: Rodrigo Fuzar
DEBATE: Para Marcelo Tas, o papel da escola e do professor não deve ser mais o de detentor de saberes. “Agora que temos os conteúdos em quase todos os lugares, a escola tem de ocupar o lugar de curadoria e de qualificação desses conteúdos; ser a grande provocadora de debates”, diz. Foto: Rodrigo Fuzar

Como você aborda a inovação e a criatividade na era digital sob a ótica da educação?

O meu eixo de estudo tem sido o de entender como a aceleração pode criar não só armadilhas e desvios nos objetivos, mas também oportunidades. Fala-se muito sobre o efeito colateral dessa aceleração, as fake news, a invasão de computadores. Estamos muito alarmados com essa transformação robusta que vivemos. Gosto de apontar alguns pontos nesses efeitos, mas também indico as oportunidades. Mais recentemente comecei a estudar os agentes de mudança. Hoje, dentro das instituições todas, pode-se criar núcleos de consciência com esses agentes, com professores, pais ou mesmo líderes de equipes dentro de empresas, enfim, com pessoas que estão preocupadas com o fato de não estarmos dando conta de acompanhar tudo o que acontece.

Esses agentes seriam filtros também?

Cada um vai ser o seu filtro. Não dá para filtrar, por exemplo, coisas que os nossos filhos vão consumir. Eles consomem onde quiserem, o tempo todo. A parte mais difícil da mudança é a mudança da mentalidade.

De pais e de professores?

É, exatamente. E isso tem muito a ver com essa ilusão de controle, de que “nós vamos controlar, nós vamos filtrar”. Não conheço nenhum empreendimento desse que deu certo. Você conhece? De um pai que diz: “Eu vou controlar o que meu filho está falando, consumindo”. A questão é muito mais de consciência e de entender o tamanho da transformação.

Você já declarou que veio de uma escola “medieval”, em que o professor se apresentava como fonte única do saber. Até que ponto isso foi desafiador? Era um aluno subversivo?

Olha, fui muito rebelde na minha vida escolar, mas ao mesmo tempo amava a escola. E acho isto muito importante: a escola ser um lugar que permita e acolha inclusive esses alunos que não se conformam com ela. O telefone que eu usava antigamente é muito diferente do telefone que uso hoje, mas a escola é quase igual. Alguma coisa está errada. E quem está errado? O telefone ou a escola (risos)? Essa história de se colocar como única fonte do saber já acabou, apesar de a escola ainda fingir que é assim. Agora, isso não quer dizer que ela perdeu sua relevância, muito pelo contrário. Agora que temos os conteúdos em quase todos os lugares, a escola tem de ocupar o lugar de curadoria e de qualificação desses conteúdos; ser a grande provocadora de debates.

Você é das ciências humanas e das ciências exatas. Como se deu essa convergência? Ela é uma tendência?

É uma tendência. E é bom falar que essa tendência vem desde a Renascença. O Leonardo da Vinci é um cara hipermultimídia. Ele é um engenheiro e é um artista plástico. Hoje, surpreendentemente, você vê mais criatividade em algumas escolas de exatas, que começam a usar essa metodologia da cultura maker; que criam coletivamente projetos; que usam design thinking, propondo soluções utilizando vieses de uma equipe com diversidade de olhares. É pura criatividade. Mas, às vezes, não se vê isso nas humanas.

E você sempre reforça o protagonismo humano nesse processo de inovação?

Há uma armadilha em que caímos muito facilmente: achar que a inteligência artificial pode dominar os humanos. Isso é uma falácia, porque a inteligência artificial não é nem inteligência nem artificial. Ela é criada por um humano. Desde os Jetsons [desenho animado com temática futurista criado na década de 1960], queremos um robô que faça as coisas que não queremos fazer. É claro que não estou negando a automação que vem aí com tudo. A coisa é bem complexa, porque a inteligência artificial aprende consigo mesma, uma autonomia que estamos vivendo pela primeira vez. É o tal do machine learning. Agora, quem está criando tudo isso e tem responsabilidade sobre isso somos nós. O humano, mesmo que ele não queira, é o protagonista da era digital.

“Quem está criando tudo isso somos nós. O humano, mesmo que ele não queira, é o protagonista da era digital”

De tudo que você ouve, lê e vê, dá para fazer um exercício futurista de como será a escola das próximas décadas?

Dá para fazer um exercício de como eu gostaria que ela fosse: mais centrada nas pessoas. E as pessoas significam o professor na linha central dessa história toda, mas em criação coletiva do conhecimento com seus alunos, sendo ele o curador, o cara que detém a experiência. Bem ao contrário dos professores antigos, que levavam tudo pronto. Lembro que a grade curricular não mudava nunca. O currículo de Química, da época dos meus pais para a minha, não mudava. E deveria mudar todo mês (risos), porque as mudanças continuam muito aceleradas. Esta é a primeira vez que estamos experimentando uma possibilidade de troca de conhecimento entre pessoas independentemente de onde elas vivam. Não importa se é em Vitória, em Veneza ou na China, todos podem ter acesso ao que se está falando sobre Química e colocar isso na roda. Isso é muito bom. Aí eu tenho uma tese sobre a Renascença. Ela é a primeira explosão exponencial que houve de informação. Na Renascença, era o Michelangelo vendo os livros do Da Vinci; era o Da Vinci vendo os livros dos caras que estavam estudando anatomia. E aí as coisas começam a ter uma interação entre os cérebros, comerciantes, poderes e reis. Os navegadores, os estudiosos de mapas celestes e tudo mais, esse pessoal todo foi trocando informações com os livros. A revolução do nerd. A aceleração da Renascença é parecida com a de hoje. A diferença é que hoje ela se dá num clique.

Então esse pessoal fez disruptura, termo muito usado hoje na área tecnológica, séculos atrás?

Ali aconteceu uma disruptura muito importante, talvez a maior que já houve, pois foi descoberta uma parte do mundo que não existia, o Novo Mundo. É como se hoje a gente chegasse a Marte. Hoje temos um potencial infinitamente maior de explosão de conhecimento, mas isso é só uma possibilidade. Não é porque temos tecnologia que está tudo resolvido, pelo contrário. Temos problemas muito complexos que vão demandar muita consciência. Tem os carros autônomos, os robôs, mas mudar a nossa mentalidade é o mais complicado. E é onde eu estou tentando contribuir.

E o que é mais desafiador?

Vou dar a minha visão sobre o significado da palavra “viés”, que hoje é o que produz as fake news e a confusão na família, nos debates do WhatsApp, no Instagram, no Facebook. Precisamos ter a consciência de que cada pessoa tem um viés quando se expressa. Esta é uma das tarefas principais para a mudança da mentalidade: entender o conceito de viés, que é quando você só olha um lado da coisa. E transformar o viés em colaboração é o que os professores podem fazer, pegando um universo de alunos que são muito diversos, com vários vieses e inclinações políticas, de comportamento e tudo mais, e alinhar para que toda essa diversidade, ainda enquanto diversidade, convirja para a colaboração, a criação. Em vez de você estabelecer o que vale, qual é a matéria do dia, vai criar um outro entendimento sobre os problemas, sobre o que temos de fazer. E o que temos de fazer é uma sociedade mais justa, mais próspera e com igualdade de oportunidade para todos.

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