"Tribunal do tráfico" ordena expulsões e mortes

Ruhani Maia
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Victor Muniz
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No Brasil, a pena máxima para todo e qualquer delito é de 30 anos de reclusão, segundo a legislação, não havendo permissão para implantação da pena de morte, em única exceção nos períodos de guerras. Mas em muitos bairros da Grande Vitória, a exceção já é uma realidade. Decidir quem merece viver ou não, é uma prática que está instituída em tribunais paralelos comandados por traficantes de drogas.

Sem chance de defesa, os irmãos Ronildo Correa, 32 anos, e Ronilson Correa, 35, foram assassinados em Central Carapina, na Serra. A execução da pena veio no dia 13 de setembro do ano passado, um domingo.
Os dois foram mortos a tiros, ao mesmo tempo, a apenas dois quarteirões de distância um do outro.

Ronildo era conhecido na região por buscar melhorias e segurança e umas das linhas de investigação é de que as mortes estão ligadas a uma retaliação de traficantes.

Irritação

A pena de morte também foi aplicada ao universitário Emerson Matos Louzada, 24 anos, no Morro do Cruzamento, em Vitória. Ele estava na casa de um amigo quando bandidos bateram na porta, entraram na residência e o executaram com mais de 10 tiros. O mandante do crime foi o chefe do tráfico no morro, Deivid Nobre da Silva, 23.

O bandido condenou Emerson à morte após saber que o universitário havia socorrido um jovem baleado na região, que Deivid acreditava ser seu rival no tráfico. A vítima dos disparos sobreviveu, para a irritação do traficante.

“Quando o Deivid ficou sabendo desse socorro, acabou entendendo que o Emerson era aliado do rival dele. Mas nem a vítima baleada e nem o universitário tinham envolvimento com o tráfico”, ressaltou a delegada Nicolle Santiago, na época da prisão do acusado.

Deivid, que era temido entre os moradores da comunidade, pela fama de violência, ainda é investigado por participação em outros assassinatos.

Penalidades

No caso dos irmãos e do universitário, a sanção foi a pior possível. Mas existem outros níveis de punição que podem ser executados pelo tribunal.

Tudo depende do “delito” cometido pelo réu. Espancamento, expulsão do bairro, um corte de cabelo, principalmente no caso de mulheres, e até mesmo uma advertência verbal são outras maneiras utilizadas pelo traficante para manter o poder dentro da comunidade.

Burlar a lei do silêncio, traição, roubo, estupro e até mesmo a desobediência a uma determinação do tráfico podem levar a pessoa a julgamento.

“Se esse tribunal vê que você deixou de atender aos interesses do tráfico, eles aplicam penas. É convocado um grupo de marginais, que em geral são os que controlam aquela comunidade, e passam a impor essas sanções da lei paralela”, explica o promotor de Justiça Criminal de Vitória, Sérgio Alves Pereira.

No dia a dia, os moradores precisam seguir as regras e até mesmo agir fora da lei para não se tornar um alvo dos bandidos, como conta a juíza Gisele Souza de Oliveira, titular da 4ª Vara Criminal de Vitória.

“Existem situações em que moradores são obrigados a guardar drogas e armas. Se forem pegos pela polícia, não podem falar nada. Em ocorrências assim, o juiz tem que agir com cautela redobrada. Delimitar as responsabilidades para evitar que uma pessoa inocente, que não podia reagir àquilo, sofra consequências”, ressaltou.

Mudanças

De acordo com a juíza, todas essas sanções se resumem ao andamento da venda de drogas. Quem se coloca no caminho do tráfico acaba sendo punido.

“Quando eles suspeitam de alguém atrapalhando, usam as leis do tráfico. Nós percebemos que existe um código de conduta próprio, com penas mais brandas e a pena máxima, que é a morte. Eles têm as leis deles. Em algumas circunstâncias eles dão uma chance para a pessoa se mudar”, concluiu.

Foi o destino de uma família que teve que deixar o Morro da Boa Vista, São Torquato, Vila Velha, escoltada pela polícia após sofrer ameaças de traficantes, em setembro deste ano. O porteiro, sua esposa e os dois filhos pequenos foram encaminhados para um abrigo da prefeitura.

Ele contou à polícia que discutiu com um feirante e depois disso começou a ser ameaçado. Numa manhã, a casa do porteiro foi invadida e ele foi levado para um barraco que fica no alto do morro, onde foi torturado.
Mesmo ferido, ele conseguiu fugir e correu até uma delegacia, onde pediu socorro. A Polícia Civil, por meio do Grupo de Operações Táticas (GOT), organizou uma operação para retirada da família.
No mesmo mês, outro trabalhador e seu filho tiveram que sair do bairro Jaburuna, também em Vila Velha, após traficantes esconderem drogas e armas na casa deles.
Já no bairro Bandeirantes, em Cariacica, um traficante também expulsou moradores que não guardavam drogas para ele nem o ajudavam a se esconder da polícia.

"Fui expulsa da minha casa, não pude nem pegar minha mudança"

Morro Boa Vista, à época da pedra que rolou destruindo várias casas. Região é alvo de disputas pelo tráfico de drogas

Morro Boa Vista, à época da pedra que rolou destruindo várias casas. Região é alvo de disputas pelo tráfico de drogas

A vida de uma promotora de vendas, de 44 anos, mudou quando ela foi obrigada por bandidos sob o comando do tráfico a deixar a casa onde morava com a família, no Morro da Boa Vista, em São Torquato, Vila Velha, há três anos. “Não pude nem pegar minha mudança”. A mulher afirma que não foi a única a sofrer com a perda do próprio lar.

Por qual motivo você saiu do bairro onde morava?

Fui expulsa. Meu filho era gerente do movimento e virou inimigo. O tráfico só traz isso mesmo. Eles não são amigos de ninguém. Vale o que você tem e não o que é. O tráfico traz muita ambição, ganância e olho grande.

Como foi essa expulsão?

Foi muito triste (choro). No dia em que eu saí não pude sequer fazer a minha mudança. Quem fez foram minhas filhas, ainda menores de idade. Achei uma moradia por R$ 1.200,00. Estou vivendo assim. Minha casa está vazia e eu pagando aluguel.

Como é a vida no morro para os moradores?

Horrível. Muito triste. A pessoa não tem mais prazer de subir o morro, andar no bairro. Você não pode nem ir à padaria direito, ou frequentar outro bairro. A maioria das casas do morro estão todas vazias. Os traficantes colocaram para descer. Eu fui expulsa pelo tráfico. A partir do momento que um familiar seu está envolvido com eles, arruma guerra, tem que descer a família toda. Não pode ficar ninguém. É a lei deles. A lei do cão. Ninguém fica na rua. Só dentro de casa. Só sai para trabalhar, volta e tranca. Uma prisão dentro de casa.

E esses conflitos são marcados por tiroteios?

Sim. Muitos. Todos os dias. É muita guerra. Naquela região ali é Cobi contra Sagrada Família e contra São Torquato. Cobi agora “fecha” (é aliado) com Soteco, Bairro da Penha (Vitória), Divino Espírito Santo (Vila Velha), Jaburuna (Vila Velha) e Vasco da Gama (Cariacica). Eles são aliados e estão contra o Morro da Boa Vista, Sagrada Família e Ilha dos Aires (todos em Vila Velha). É tiroteio, morte e muita covardia. O grande problema ali é o pessoal do Cobi. São os mais fortes. É muita aliança.

Eles chegam a agredir quem não tem ligação com o tráfico?

Sim. A pessoa é expulsa de casa, deixam levar os bens, desde que você saia do morro.

E os moradores são obrigados a cooperar com o crime?

São obrigados. Acontece muito. Vou dar um exemplo: se eu estou em uma casa, não tenho nenhum vínculo com o tráfico, e eles batem na minha porta, sou obrigada a abrir. Entram homens armados e você não pode falar nada.

Tem que guardar armas,  drogas e ficar calado. Se a polícia pegar, a pessoa vai presa inocente. Não tem jeito, eles não respeitam, são muito abusados.

E quem mora no morro hoje?

Quem eles querem.

Como é a atuação da polícia lá?

Tem uma certa frequência. Mas os traficantes correm, se escondem. É muita “quebrada” (locais de difícil acesso). Não tem como pegar. Vamos dizer que ele está correndo com uma arma e um quilo de pedra. Entra para a casa de um morador e já era. Não tem como fazer nada. Lá a vida é assim.

Você gostaria de voltar para casa?

Eu gostaria de voltar. Mas tenho medo que os inimigos do meu filho me matem.

casos

18/03/2016
Súplicas em vão
Um lavrador, 21 anos, foi morto a tiros em Santiago, na Serra. Segundo a polícia, traficantes proíbem que qualquer pessoa entre ou saia do bairro após às 23h30, além de não autorizarem que moradores usem calça comprida ou camisas durante a noite. O lavrador, que morava em outro bairro e não sabia das regras, foi morto após sair de um bar em Santiago.

07/06/2016
Símbolo da discórdia
A pintura com o símbolo de uma gangue quase causou a morte de um carroceiro de 18 anos, em Vale Encantado, Vila Velha. Ele levou seis tiros de um bandido porque estava circulando com a sigla “TD 2” pichada na carroça. O símbolo representa uma das gangues do bairro. Os traficantes rivais, do “TD 3”, foram tirar satisfação com o carroceiro e atiraram.

23/06/2016
Sem atenção da polícia
Um temido traficante do bairro Bandeirantes, em Cariacica, morreu com três tiros na cabeça, em Vila Isabel, bairro vizinho. Ele pode ter sido morto por bandidos da própria gangue, já que o traficante estava praticando assaltos no bairro e chamando a atenção da PM. O traficante costumava expulsar moradores que se recusavam a ajudá-lo.

28/03/2016
Traição
A jovem Gracy de Lima, 18 anos, foi morta com mais de 100 golpes de faca, em março deste ano, em Civit I, na Serra. Como mandante, foi apontado pela polícia Rafael Muniz Madeira, 24, chefe do tráfico nos bairros Mestre Álvaro e Serra Dourada II. Ele mandou executar a jovem porque ela estaria levando informações sobre o grupo dele para os rivais.

Moradores reféns do tráfico em 126 bairros

“Minha casa está lá, vazia. Tenho medo de voltar e morrer”. A promotora de vendas Maria*, 44 anos, não pode ir e vir, como uma cidadã comum. Do dia para noite, sua residência simples, localizada no Morro da Boa Vista, em São Torquato, Vila Velha, foi tomada por traficantes, interrompendo nove anos de história dentro da comunidade.

Maria juntou tudo o que conseguiu e saiu de casa, junto com os cinco filhos. Hoje, ela precisa pagar R$ 1,2 mil de aluguel em outro bairro do mesmo município. Há três anos vive assim. Com medo da morte.

A expulsão de Maria de sua casa é só uma amostra de um poder que coage silenciosamente e impõe leis próprias, ferindo os direitos básicos de cidadãos na Grande Vitória.

Durante três meses, a reportagem fez um levantamento, com a ajuda de moradores, policiais civis e militares sobre a influência do tráfico de drogas dentro das comunidades.

Em 126 bairros de quatro municípios da Região Metropolitana – Cariacica, Serra, Vila Velha e Vitória – uma parcela da população vive sob as leis de traficantes, que impõem desde pequenas restrições, como a hora do culto numa igreja até um tribunal paralelo de “justiça”, onde eles determinam quem pode viver ou deve morrer.

O município com atuação mais intensa de traficantes é Vila Velha. No local foram mapeados 39 bairros onde a situação é de medo. As regiões da Grande Santa Rita, Grande Terra Vermelha e arredores do Boa Vista são pontos mais críticos. Cariacica aparece em segundo lugar, com 31 locais mapeados, seguido por Serra com 27 bairros. Na Capital, são 29 regiões, sendo Bairro da Penha historicamente dominada por traficantes.

Sem perdão

Juíza titular da 4ª Vara Criminal de Vitória, Gisele Souza de Oliveira já trabalhou também na Serra, local onde ela conta ter atuado em um dos casos mais chocantes de sua carreira como magistrada.

A simples desconfiança de um traficante condenou duas mulheres à morte. Tudo porque o criminoso imaginou que uma delas poderia ter passado o esconderijo dele, que estava foragido, para os policiais.

“A polícia foi lá cumprir mandado de prisão. Só que o traficante conseguiu fugir naquele dia e desconfiou que poderia ter sido uma senhora, dona de um bar, quem passou a informação sobre sua localização. Dois dias depois, ela estava na rua, conversando com uma vizinha. Ele chegou e matou as duas. Somente porque desconfiou de uma delas”, contou a juíza.

O promotor de Justiça Criminal de Vitória Sérgio Alves Pereira afirma que um “tribunal do crime” atua dia após dia nas comunidades dominadas por traficantes.
“Esses tribunais aplicam uma medida coercitiva quase de maneira instantânea e, dentro daqueles valores de violência, passam a ditar as regras daquela comunidade. As penas podem ser variadas, com punições sempre violentas”, ressalta o promotor.

Números

Segundo a Secretaria de Segurança do Estado, 63% dos assassinatos registrados no Espírito Santo têm ligação com o tráfico de drogas.

Cariacica, Serra, Vila Velha e Vitória respondem por mais de 50% dos assassinatos. Por diversas vezes, pessoas inocentes acabam se tornando vítimas, seja por bala perdida, seja por confrontos de gangues que estão diariamente em guerra. E para estar na mira do tráfico, basta contrariar – ainda que muitas vezes sem querer – as regras impostas pelos criminosos.

“Nossas regras”

Além de conviverem com as ameaças de morte, são diversas as regras que moradores comuns, trabalhadores, donas de casa, estudantes e até crianças, são obrigados a seguir. Esconder armas e drogas dentro de casa, jamais falar com a polícia ou com a imprensa, ceder o próprio quintal para o comércio de entorpecentes, assistir ao comércio ilegal na porta de casa e nada dizer, entre outras diversas regras, que na maioria das vezes não são explícitas, mas já estão no cotidiano de quem convive com o “movimento” – como é chamado o grupo que explora o tráfico.

Ataque

Em Castelo Branco, Cariacica, fiéis que saíam de uma igreja foram atacados por traficantes, em setembro deste ano. O motivo? Eles estavam com roupas sociais e conversando em grupo na rua. Foram muitos tiros disparados contra eles e duas pessoas foram atingidas.

Segundo a polícia, os traficantes de Castelo Branco estão em guerra com os criminosos de Rio Marinho, bairro vizinho. Rivalidade entre bairros que acontece em Vila Velha, na Serra, na Capital, e também já se registra no interior do Estado.
No caso dos fiéis da igreja, eles foram confundidos com bandidos do grupo rival, porque esses passaram a usar roupas sociais como disfarce para circular no bairro vizinho e atacar desafetos.

Entrega para quem?

E até quem não vive nos bairros dominados pelo tráfico está sujeito às leis. Trabalhadores que prestam serviços básicos para quem mora nessas comunidades também são vigiados e sofrem retaliações.

Para apresentar as regras aos “visitantes”, os muros são usados como recado. “Entre sem capacete e abaixe o farol” é a ordem pichada no bairro Guadalajara, Vila Velha. “Silêncio é o poder” é um mandamento escrito na fachada de uma casa em Padre Gabriel, Cariacica. Já os dizeres “Bem-vindo ao inferno” são encontrados no Beco do Garrafão, em Santa Rita, Vila Velha.

Para os motoboys, infringir as leis de trânsito no ato de tirar o capacete para fazer uma entrega é a única opção para entrar em bairros como José de Anchieta II, na Serra, ou Andorinhas, em Vitória. Já os motoristas de ônibus são obrigados a abrir as portas para que os moradores de um bairro em Vitória usem o transporte coletivo sem pagar a passagem.

(* ) Maria é um nome fictício para a personagem e a história reais.

 

Cariacica - Mais um muro com frases ameaçadoras em bairros da Grande Vitória, agora na rua Silvano Ferreira Santos no bairro Porto Novo - Foto: Marcelo Prest

Mudança de vida após bala perdida

Ao ser vítima de uma bala perdida no pescoço, um advogado de 33 anos precisou sair de sua casa, em Feu Rosa, na Serra, por medo da violência. Em outubro de 2015, ele saiu de casa para ir à feira e acabou ficando no fogo cruzado durante um acerto de contas entre bandidos.

Qual a data em tudo aconteceu?

Dia 19 de outubro do ano passado, por volta das 13h. Era um dia normal, de domingo, levantei um pouco mais tarde. Saí de casa com minha mulher e, não me lembro porque, resolvemos não levar nossos filhos. Fomos à feira, para comprar frutas, verduras e legumes. Um programa comum de domingo.

E em que momento isso mudou?

A cerca de 200 metros da feira, dentro do carro, nós ouvimos dois barulhos que não identificamos direito. Com vidro fechado, som ligado, não deu para perceber. Cerca de 10 metros à frente, quando chegamos em um cruzamento, ouvimos mais vários disparos. Algumas pessoas estavam correndo e quando eu tentei acelerar o carro, já ouvi um barulho muito forte do meu lado esquerdo, no vidro da janela.

O que você sentiu?

Eu senti um tapa. Um impacto muito forte no pescoço. Eu dirigi mais uns 300 metros. Não sabia o que estava acontecendo. Eu só queria sair dali.

Então você nem sabia do que se tratava?

Não tinha absolutamente nada a ver comigo aquela situação. Na hora, quando ouvi o barulho e senti o impacto, vi o buraco que o projétil deixou na janela e pressionei meu pescoço com a mão. Eu fiquei consciente o tempo todo e quase dirigi até o hospital. Acho que por medo, ninguém queria prestar nenhum tipo de auxílio. Eu acredito que fiquei lá por uns 15 minutos até alguém se predispor a dirigir meu carro e me levar ao hospital.

Acha que as pessoas ficaram com medo de quê, para não te socorrerem?

Na verdade, ninguém sabia do que se tratava. Acredito que era medo de retaliação posterior. De repente você salva a vida de alguém que outra pessoa quer tirar, aí você interferiu. Acaba se tornando alvo também. Eu já estava virando a chave para poder dirigir até o hospital. Ninguém teve coragem de ajudar.

O local onde a bala atingiu te deixou em risco de morrer?

Os médicos repetiam todos os dias que milímetros para a esquerda eu estaria paraplégico e para a direita, morreria em três minutos. Teria atingido ou a cervical, ou a artéria. A bala passou entre os dois. Causou uma lesão no meu esôfago e atingiu a laringe. Me deixou uma leve sequela respiratória.

Você, que é trabalhador, o que pensa após ter passado por isso?

Essa é uma situação complicada. Você se sente completamente impotente. A mercê da sorte. A verdade é essa. Você espera, de repente, algo semelhante à noite. Mas em um domingo, no meio do dia…A gente pensa em tudo. Do momento que eu fui atingido, até a entrada no hospital, em 30 minutos, pensei que meus filhos poderiam estar juntos, que se eu morresse como eles ficariam, minha mulher estava confiante o tempo todo. Mas considerando o tempo para eu conseguir chegar ao hospital e estar sangrando, uma possível hemorragia interna, achei que fosse morrer. Foi muito complexo, foram 10 horas de cirurgia.

Quantos dias ficou internado?

Foram 27 dias. Sem poder fazer nada. Mais de um mês de recuperação. Treze dias com traqueostomia. Sem poder trabalhar, nada.

O que acha que causa isso?

Desigualdade social. A origem do problema é essa. Nos últimos três anos, a violência intensificou ali na região por causa do tráfico de drogas. Homicídio. Geralmente em decorrência de guerra de território. A população de bem nesse local se acostumou com essa situação e não mensura o risco. Evitavam sair à noite, ir a locais com pessoas voltadas para essa atividade. Tudo em decorrência do agravamento da violência.

Ainda mora lá?

Não. Eu mudei. Até então eu não tinha envolvimento com o ocorrido. Mas os dois acusados estão presos até hoje. Mais de um ano depois. Eu não tenho dúvida que a minha interferência involuntária contribuiu para isso. Era uma disputa por território de tráfico entre dois primos. Isso é algo tão normal, que acredito que se não tivesse me atingido, eles sequer teriam sido presos. Eu não tinha nada a ver com a história, a partir daquele momento, mas agora eu me sinto. Fiquei inseguro. Fechei a sala que eu tinha lá e me mudei.

Após se mudar, você se sente mais seguro?

O índice de violência é menor. Mas seguro é uma palavra bem complexa. Não existe um lugar seguro. A gente fica contando com a sorte.

Muro pichado em Jardim Guadalajara, Vila Velha. Foto: Vitor Jubini

"Meu bairro é esquecido por todos"

“Com o tráfico de drogas e a falta de estrutura, a gente não tem nada”. O desabafo resume o sentimento de uma dona de casa que reside em Barramares, Vila Velha. Segundo ela, traficantes controlam até mesmo o que os moradores conversam dentro de casa.

Como é morar em Barramares hoje?

Eu gosto de morar lá, mas chega no horário de 18 horas, eu entro na minha casa e não saio mais. Tenho medo. Não deixo minhas meninas ficarem do lado de fora. Tem muito tiroteio. É o que mais tem lá. Parece até festa junina.

Tudo causado pelo tráfico?

O tráfico acontece na avenida principal do bairro a qualquer hora. Quando vou trabalhar tem gente nos pontos de venda. Tem muito adolescente no tráfico. Crianças que aprendem o que não presta.

Desde novos esses jovens já participam do “movimento”?

As crianças já estão acostumadas com o tráfico. Quando chegam na idade de 10 anos, já estão perdidas. Eu nem deixo as crianças da minha família ficarem na rua. A gente tem que salvar quem puder. Eu tenho dois sobrinhos que reclamam muito de não poderem ficar na rua. Eu revezo com a minha irmã. Quando ela está trabalhando, eu fico com eles, para não deixá-los sozinhos. Se o traficante chamar, mostrar dinheiro, já era. Se a criança não tiver alguém ali do lado, acaba entrando mesmo.

E como é viver no meio disso tudo?

Eu morro de medo. A gente conversa só com quem é morador da mesma rua. Tem muito olheiro para saber sobre o que estamos falando. Eu evito falar alto até dentro da minha casa. Não posso conversar nada no meu quarto, por exemplo, porque temos muito medo de falar qualquer coisa. Não existe a palavra tráfico na rua.

Vocês denunciam essa situação à alguém?

Quando alguém faz denúncia para o 190 ou 181, os traficantes passam, de casa em casa, perguntando quem é o “X-9” da área. Eles ficam perguntando quem ligou. É melhor a gente ficar de boca fechada.

E a polícia?

Raramente vai no bairro. Não tem patrulha. A gente não tem nem pracinha. Se pudéssemos, ficaríamos à noite na rua, levaríamos as crianças, mas com o tráfico e a falta de estrutura, a gente não tem nada disso. A verdade é que o meu bairro é esquecido. Não temos esperança.

Facção paulista dita regras e arma confrontos

Bandidos do Estado contam com ajuda de fação nacional para agir

Região do Bairro da Penha, em Vitória. Área registra diversos conflitos entre grupos de traficantes

Região do Bairro da Penha, em Vitória. Área registra diversos conflitos entre grupos de traficantes

Uma facção criminosa nacional, com base em São Paulo, é responsável por comandar o tráfico de drogas na capital do Estado capixaba há dez anos.

É o que aponta uma investigação do Ministério Público do Espírito Santo (MPES). A reportagem teve acesso, com exclusividade, a um relatório sobre as atividades do grupo no Estado.

De acordo com a investigação, diversos bairros de Vitória, principalmente na região do Bairro da Penha – que abrange também os bairros Bonfim, São Benedito, Gurigica, Itararé e Consolação – são comandadas por duas quadrilhas que na verdade são ramificações do grupo nacional. O nome da facção não será divulgado a pedido do Ministério Público.

Tudo começou no ano de 2006, quando foi interceptado um contato de presos do Espírito Santo – um “salve” – direcionado a encarcerados de São Paulo, onde a facção foi criada e tem sede. Esse teria sido o primeiro contato entre bandidos da Grande Vitória e os criminosos paulistas. Aproveitando que o sistema prisional da época estava desorganizado, a facção resolveu “investir” no Estado, segundo informações do relatório.

O Bairro da Penha foi o local escolhido como base do grupo paulista. Foram eleitas lideranças, bandidos que já comandavam a região na época, para chefiarem a venda de entorpecentes do local, tudo sob os preceitos da facção nacional.

Guardadas as características de comando local, as estratégias, táticas e todo o sistema de funcionamento do tráfico no Bairro da Penha é baseado na facção de São Paulo, segundo a investigação.

Em 2012, uma briga entre as duas quadrilhas ramificadoras – que até então atuavam juntas – resultou em uma sangrenta disputa pelo poder da região. Foram diversos tiroteios até que se voltasse a um acordo de trégua, existente nos dias de hoje.

E apesar dos confrontos terem diminuído na região, o tráfico de drogas continua a todo o vapor. Segundo a investigação, a região do Bairro da Penha é responsável por abastecer bocas de fumo em todo o Estado.

Confrontos

O relatório ainda chama a atenção para a “estratégia de confronto” contra a Polícia Militar: membros da facção estão sendo orientados a partirem para o enfrentamento armado durante patrulhamentos e operações na região.

Um exemplo citado é recente. No dia 11 de setembro deste ano, em uma ocorrência policial no bairro Ariovaldo Favalessa, quatro bandidos entraram em confronto com PMs, que precisaram efetuar disparos contra os criminosos. Um deles morreu. Os outros conseguiram escapar. Com o criminoso baleado foi encontrado um revólver calibre 38. Ele tinha registro criminal por tráfico de drogas e porte ilegal de arma.
Horas após o confronto, cerca de 200 moradores de Caratoíra, bairro vizinho, protestaram contra a morte do criminoso, ameaçando, inclusive, incendiar ônibus.

O documento ainda ressalta indícios de que a facção paulista pode estar criando ramificações em Nova Almeida, na Serra, e no interior do Espírito Santo, principalmente na região Norte.

Atuação de facção nacional nunca foi comprovada, diz Garcia

Questionado sobre as informações cedidas pelo Ministério Público do Espírito Santo à reportagem, o secretário de Estado de Segurança, André Garcia, negou a atuação de qualquer facção criminosa de âmbito nacional no tráfico de drogas da Grande Vitória e do Estado.

“Nós temos informes de atuação dessa facção, mas que nunca foram confirmados”, afirmou o secretário.

Garcia ainda disse que esse “fascínio” dos criminosos do Estado pelas grandes facções de Rio de Janeiro e São Paulo faz com que os bandidos procurem esse tipo de ligação.

“Há bandidos que querem ter o nome associado a uma facção desse porte. No entanto, não há atividade, que a gente possa dizer, organizada, dessa forma que está sendo colocada. Não existe e eu acho que algumas pessoas até gostariam que existisse”, ressaltou Garcia.

Os documentos de investigação do Ministério Público mostraram que parte dos chefes dessas quadrilhas que atuam na Grande Vitória estão nas cadeias e controlariam o crime de dentro das penitenciárias.

O secretário disse que a situação nas prisões do Espírito Santo está sob controle. “Nosso sistema prisional tem um controle melhor que todos os outros no Brasil. Houve um esforço muito grande de reorganização do sistema prisional capixaba e uma das consequências disso é que a gente retomou o controle da situação”, disse .

O secretário admitiu que a informação pode sair, vez ou outra, da cadeia para a rua, mas que os órgãos de segurança estão atentos a essa questão.

“Pode acontecer que um ou outro bilhete chegue na mão de um responsável pelo tráfico, mas não se tem uma ação sistemática. Nenhum que funcione como escritório do crime. Temos relatos que parentes que já foram até presos por passar informações”, concluiu o secretário.

Confirma amanhã: “Tribunal do Tráfico” comanda mortes e expulsões na Grande Vitória