Transferido para um presídio do Espírito Santo, o médico condenado a 56 anos de prisão pelo icônico crime dos meninos emasculados de Altamira, no Pará, luta para provar sua inocência. A favor dele estão criminalistas, policiais e até mesmo o homem que depois confessou ser o real autor das mortes. 

Natália Bourguignon
[email protected]

Wing Costa
[email protected]

Há 23 anos o Brasil e o mundo se estarreciam com um dos casos mais bárbaros da polícia do país: os Meninos Emasculados de Altamira. Onze garotos mortos com requintes de crueldade e outros cinco desaparecidos em circunstâncias suspeitas. No centro desses crimes, um médico capixaba. Acusado, condenado por um júri popular e preso, Césio Flávio Caldas Brandão trava uma batalha na Justiça para provar sua inocência.

Em defesa do médico estão criminalistas, a polícia e até o assassino confesso de todas as mortes. Do outro lado está a Justiça que, respaldada no depoimento de uma testemunha e nas investigações do Ministério Público, reuniu elementos para lhe impor uma sentença de 56 anos de prisão.

Após cumprir dez anos de pena no Pará, quase sem contato familiar, Césio conseguiu a transferência para o Espírito Santo. Agora, ele espera que a sentença seja revista.

HIGHLIGHT1

O caso

As vítimas eram dezenove meninos pobres, com idades entre 8 e 14 anos. Desses, cinco corpos nunca foram encontrados, três sobreviveram mas foram mutilados e 11 foram assassinados e castrados. Os crimes aconteceram na cidade de Altamira, a 777 km de Belém do Pará, entre os anos de 1989 e 1993.

As crianças encontradas estavam nuas, algumas com orifícios de arma de fogo, queimaduras de cigarro, olhos arrancados, pulsos cortados, órgãos sexuais extirpados e com sinais de abuso sexual.

Em 1990, a polícia do Pará fez a primeira prisão relacionada ao caso. Dois meninos que haviam sobrevivido à emasculação reconheceram o morador de rua Rotílio de Souza como o adulto que os teria atacado. Na época, a polícia tinha a certeza de que tinha capturado o “monstro de Altamira”.

Rotílio morreu poucos meses depois na delegacia de Altamira em circunstâncias misteriosas. No entanto, novas mortes, nos mesmos moldes das anteriores, mostraram que o assassino não era ele e a investigação recomeçou.

Foi no ano de 1993 que a história dos meninos emasculados de Altamira se cruzou com a do médico ginecologista capixaba Césio Brandão. Morando na cidade desde 1990, Césio havia passado em um concurso da Fundação Nacional de Saúde para ser diretor do hospital de Altamira.

Ele e um outro médico, Anísio Ferreira, foram detidos para prestar esclarecimentos sobre o caso. A hipótese da polícia era de que eles estariam matando os meninos para vender os órgãos clandestinamente.

No entanto, laudos periciais comprovaram que, da maneira como foram retirados, os órgãos não teriam nenhuma serventia para fins de transplante.

Sem provas suficientes, Césio e Anísio foram liberados após 30 dias e o processo foi arquivado. Um ano depois, ainda sem respostas sobre a autoria das mortes, a polícia reabriu as investigações e tornou a prender os dois médicos.

SEITADessa vez, a suspeita era de que eles faziam parte de uma seita chamada Lineamento Universal Superior (LUS). Para a polícia, as mortes ocorriam em rituais de magia negra. Outros dois homens foram detidos, além de uma mulher, Valentina Andrade Viana, identificada no processo como vidente e líder da seita.

Contra Césio havia uma testemunha: um idoso, na época com 74 anos, afirmou à polícia que viu um homem vestido de branco saindo de uma mata com uma bicicleta e um facão ensanguentado. Próximo ao local apontado por ele foi encontrado o corpo de um dos meninos.

Na delegacia, o idoso reconheceu Césio como sendo a pessoa que ele viu sair do mato naquele dia.

Baseada no depoimento da testemunha, a polícia indiciou o médico, que ficou preso durante dois anos antes de conseguir um habeas corpus que permitiu que ele aguardasse o julgamento em liberdade.

Fora da cadeia, Césio voltou para Vitória e para a família. Começou a trabalhar normalmente em hospitais da Grande Vitória e a retomar a vida que tinha antes de ter o nome envolvido em um caso de emasculação de crianças.

Dez anos depois da primeira prisão, o médico capixaba foi a Júri Popular. Em setembro de 2003, ele se despediu dos colegas de plantão do hospital São Lucas com a certeza de que voltaria para o emprego e para a família em poucos dias.

“Um dia antes de viajar para o Júri no Pará ele foi à minha casa. Eu perguntei: ‘Césio tem certeza que você vai para esse juri?’ Ele respondeu ‘Claro que eu vou. Não há nada que possa se provar contra mim’”, conta Renildes Baia, amiga e atual advogada do médico.

Mas Césio não voltou pra casa. Ele foi condenado por 4 votos a 3 por dois homicídios e uma tentativa de homicídio. A pena: 56 anos de prisão.

condenado pelo juri

A reviravolta

No mesmo ano de 2003, três meses após o júri, foi preso no Maranhão o mecânico Francisco das Chagas, pelo desaparecimento de um menino. Posteriormente, Chagas confessou 42 assassinatos perante a Polícia Civil maranhense e a Polícia Federal, 30 deles no Maranhão e 12 no Pará, na cidade de Altamira.

Todos os casos eram idênticos: os meninos eram atraídos para uma mata, mutilados e assassinados. Segundo o agressor, apenas três sobreviveram, todos em Altamira. As alegações do mecânico foram confirmadas por investigações lideradas pela Polícia Federal e assistidas pela criminóloga especialista em crimes em série, Ilana Casoy. Não restavam dúvidas: Francisco das Chagas era um serial killer. Dentre os crimes confessados, estavam aqueles pelos quais foram condenados os médicos Césio e Anísio.

“Eu estava na sala quando ele confessou. Ele falou com riqueza de detalhes, contou conversas que teve com os meninos. Ele falava que ele tinha cortado o dedo médio da mão direita de um menino, aí eu olhava no laudo cadavérico da vítima e lá constava que faltava o dedo médio da mão direita”, afirma a especialista.

Em setembro de 2004, cerca de seis meses após confessar as 42 mortes, o assassino concedeu entrevista à revista Carta Capital. À reportagem, ele também afirmou ser o autor das mortes imputadas a Césio e ao colega. “Eles não têm nada a ver com essas casos de Altamira que eu falei. Se esse pessoal está preso por causa disso, eles estão presos em vão. Estão preso inocente”, contou o assassino.

Após passar por diversos julgamentos, o último deles em 2014, Chagas já acumula uma pena de 414 anos e seis meses de reclusão pelo homicídio, ocultação de cadáver e emasculação de 12 das 42 vítimas que ele confessou ter matado. Chagas está preso desde 2004 no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís.

cesio

Rastro de Injustiça

Só no Maranhão, estima-se que 30 pessoas foram investigadas e seis indiciadas pelas mortes que Chagas era culpado. O caso mais icônico é o do vigia Robério Ruiz, condenado a 19 anos pela morte de dois meninos. Ele era ex-namorado da mãe de uma das vítimas e era visto com frequência junto da outra.

Depois que Ruiz já tinha passado seis anos na prisão, Chagas foi preso e confessou os crimes pelos quais ele estava na cadeia. O Ministério Público do Maranhão reviu o caso e o vigia foi solto.

“Todo caso de serial killer deixa uma rastro de injustiça. Ainda mais quando as vitimas são pobres, o criminoso só é preso lá na frente. O Chagas matou durante 15 anos antes que alguém prendesse ele. Nesse tempo, já tinham ido 42 meninos. Em casos de crimes de série você tem vários suspeitos em cada caso até que se descobre que é um autor só”, afirma Ilana Casoy.  

No entanto, Césio e os outros três condenados não tiveram a mesma sorte. Como foram julgados e condenados no Pará, eles dependem que o Ministério Público paraense investigue os assassinatos que Chagas afirmou ter cometido na cidade de Altamira.

“A Policia Civil tem certeza que o culpado pelas mortes é o Chagas, a Polícia Federal tem certeza, só a promotoria do Pará que não acredita”, afirma Ilana Casoy.

A promotora Rosana Cordovil dos Santos, que atuou na condenação dos acusados do Pará, evitou dar muitos detalhes sobre o caso, mas se mostrou convencida da culpa de Césio e dos que foram presos com ele. “Não tenho nem interesse em comentar, porque no final acabam dizendo que houve uma injustiça. Veja bem, as provas eram mais do que suficientes e eles foram condenados. Pronto”, disse antes de repetir: “Os autores dos crimes são Césio, Anísio, Amailton Madeira e o policial Santos”, afirma sem titubear.

JULHAMENTO

A criminóloga Ilana Casoy lembrou que a representante do Parquet havia presenciado os depoimentos de Chagas no Maranhão. No entanto, as confissões do assassino em série não pareceram convencer a promotora. “O que ele falou não batia em nada com o que existia no processo. Tanto foi assim que nenhum promotor de Altamira o denunciou”, se defende.

Para finalizar a conversa, a promotora foi categórica. “Eu fiz o meu trabalho, que era condená-los. Eu condenei. Agora os fatos extra-processo quem tem que lidar são os advogados dos réus”, conclui.

Na cadeia

Após sair algemado do Júri, Césio passou dois anos na cadeia, dividindo a cela com o médico Anísio Ferreira, este condenado a 77 anos de encarceramento.

Os advogados apelaram da decisão e, enquanto o processo seguia em instâncias superiores, em 2005 o Supremo Tribunal Federal concedeu ao médico um habeas corpus para que ele aguardasse em liberdade.

De posse do documento, Césio voltou novamente para Vitória. Ele retomou a prática da medicina em hospitais públicos do Estado e seguiu com a vida normalmente até o dia 22 de maio de 2009.

HC 2

Eram 6 horas da manhã quando a Polícia Federal bateu à porta do apartamento da família no Centro de Vitória. Munidos de um mandado de prisão, eles levaram o médico, algemado, para a penitenciária de Viana enquanto organizavam a transferência para o Pará.

No dia seguinte, os jornais anunciavam que um criminoso de alta periculosidade, foragido da Justiça do Pará, tinha sido preso em Vitória. Sem poder se despedir da família, Césio só conseguiu contato com a esposa quando o avião fez uma parada em Belo Horizonte. “Meu pai falou bem rápido que amava muito a gente e começou a dar instruções de quem a gente deveria procurar, quem poderia ajudar”, afirmou a filha do médico, Stefany Brandão

Nos cinco anos seguinte, o capixaba passou por diversas penitenciárias diferentes. A cada mudança, a história se repetia: Césio tinha que lidar com o estigma de “assassino de crianças”, uma fardo pesado a ser carregado em uma penitenciária.

“No início, os presos eram muito hostis. Mas depois muitos ouviam sobre a história de que ele tinha sido preso por engano e o tratamento mudava”, afirma a advogada de Césio.

Quando a poeira baixava, o médico acabava se integrando, tanto quanto possível, na comunidade carcerária. Ele escrevia cartas para os analfabetos, fazia pregações evangélicas na hora do banho de sol e chegou até a liderar o coral de uma das penitenciárias onde ficou.

cadeia

Quando chegou à Penitenciária de Segurança Máxima I (PSMA I), em Viana, Espírito Santo, no fim de 2014, não foi diferente. “Nós pedimos ao diretor da penitenciária uma atenção especial com relação à segurança dele”, explicou a advogada Renildes Baia.

Na PSMA I, uma surpresa: Césio teria que dividir os poucos metros quadrados da cela com Marcos Itiberê Rodrigues de Castro Caiado, que assassinou os dois filhos e os cimentou na parede em 2000, em um crime que chocou o Espírito Santo.  

“Ele ficou um mês sem dormir com medo do Itiberê matá-lo. Eu ia nas visitas e perguntava ‘como você está?’. Ele respondeu ‘a comida aqui é melhor, mas eu não durmo. Eu sei o perigo que eu corro. Ele pode me matar’”, conta Renildes.

A convivência dissipou o medo e, hoje, Césio não tem problemas com o companheiro de cela. “Atualmente eles convivem bem, têm confiança”, afirma a advogada.

O drama da família

Durante os mais de 10 anos de encarceramento, Césio perdeu mais do que a liberdade. O processo afetou profundamente a família inteira. Só em honorários de advogados, a filha estima já terem sido gastos mais de R$ 1,2 milhão.

“Foi tudo. Tudo que a família tinha o processo foi levando”, conta Renildes. Enquanto amiga da família, ela viu a esposa de Césio se desfazer de imóveis e carros para pagar gastos com advogados, viagens e hotéis para acompanhar os julgamentos e para visitá-lo na cadeia no Pará.

cesio_sumido

“A gente não tinha condições. Nos últimos seis anos, a minha mãe foi visitar meu pai uma vez por ano. Eu não fui nenhuma, porque era muito caro”, lembra Stefany. Ela desistiu de fazer medicina aos 17 anos, depois que viu o pai ser preso e não voltar mais pra casa.

A prisão de Césio também influenciou profundamente o futuro dos dois outros filhos do médico. Marcelo Fávero Brandão, hoje com 28 anos, prestou concurso para a Polícia Rodoviária Federal, para ajudar financeiramente a família. “Quando eu comecei a trabalhar foi quando eu comecei a sustentar minha família. Até eu me casar, eu sustentei a minha família integralmente”, afirma o mais velho dos três irmãos.

Em uma coincidência, Marcelo acabou lotado para trabalhar em Belém. Já o pai, foi transferido e acabou em uma penitenciária há 800 metros de onde o filho morava. “Eu visitava ele toda semana. A gente falava de amenidades, eu dava noticias da família. Toda semana ele me entregava uma carta que eu digitalizava e mandava pra minha mãe. Ela também mandava, eu imprimia e levava pra ele”, lembra.

Durante esse período, a vida de Marcelo praticamente parou. “Eu não tinha vontade de nada, não saía, não queria nada. Acabei conhecendo minha esposa, mas tinha muita resistência em me casar, em tocar a vida a diante. Foi meu pai que me deu uma chamada durante uma visita. Ele falou que eu não poderia deixar minha vida passar. Eu queria esperar ele sair, queria ele no meu casamento, mas não tinha condições. Como celebrar com uma ausência dessas?”, conta Marcelo.

Marcelo se casou em 2012, sem a presença do pai. “Foi algo terrível. Eu estava feliz, mas estava triste ao mesmo tempo”. Recentemente, ele se mudou para Vitória, mas guarda muitas mágoas da Justiça paraense. “É uma luta desumana. A Justiça do Pará quer mais é que a gente suma, que morra sem deixar vestígio, porque eles não vão querer dizer agora que, depois de 20 anos, meu pai é inocente”, afirma.

Segundo a família, foi o irmão caçula, hoje com 26 anos, quem mais sofreu com a batalha jurídica travada pelo pai. “Ele foi o mais afetado. Ficou muito fechado, guardou muito pra ele o sofrimento, terminou o ensino médio e não sabia o que fazer. Ele se mudou para os Estados Unidos esse ano, sem dúvida porque ele estava abalado, não conseguiu tocar avida a diante. Ele queria que tudo voltasse ao que era antes”, relata Marcelo.

TESTE-Recuperado

Stefany

Stefany Brandão nasceu no Pará. Filha do médico Césio Flávio Brandão, a jovem tinha 10 meses quando o pai foi preso pela primeira vez como um dos responsáveis pelo caso dos Meninos Emasculados de Altamira. Stefany, hoje se formando no curso de Direito, só tomou real conhecimento do caso mais de 15 anos depois.

“Eu não sabia muito do caso. Minha família quis nos proteger, a mim e a meus irmãos. O que a gente sabia era que papai tinha um problema com a Justiça e que isso logo se resolveria. Mas não se resolveu”, disse Stefany em entrevista no apartamento da família, um prédio antigo na Cidade Alta, no Centro de Vitória, para onde se mudaram após os gastos com custas processuais e as muitas idas e vindas de Césio à prisão.

Em uma manhã de 2009, enquanto aguardava a volta do pai de um dos muitos plantões que fazia, a adolescente abriu a porta de casa e, em vez de Césio, encontrou vários homens. Policiais, promotores? Não soube precisar. Os homens buscavam o médico e a adolescente permitiu que entrassem. Ela não percebera, mas Césio já havia voltado e estava dormindo. Stefany viu o pai ser preso.


Médico Césio Brandão é preso em Vitória...

“Isso aconteceu quando eu estava no 3º ano do Ensino Médio. Foi a primeira vez que tive real contato com o caso. Até ali eu não sabia como acontecia um processo, o que era um trânsito em julgado”, conta Stefany Brandão, que se forma em 2016 em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo e já passou na prova da Ordem dos Advogados do Brasil.

Uma pergunta frequente é se a jovem cursou a graduação para ajudar o pai. A resposta vem sem pensar muito. “Eu queria fazer Medicina, sempre admirei muito o trabalho do papai. Mas quando me perguntam se escolhi Direito para ajudá-lo, eu diria que não. Foram questões práticas, do que queria fazer da vida”, disse Stefany, que entendeu durante o curso qual seria a sua missão.

“Logo no inicio eu não tinha noção do que era um processo, não sabia porque ele havia sido preso. Nem sonhava que ele demoraria mais de dois anos, quanto mais que eu conseguiria fazer um curso de Direito inteiro. A partir do 7º período eu tive certeza que meu destino seria ajudar meu pai”, confessa.

A partir daí, a jovem passou a acompanhar de perto a situação de Césio.  Entre as fotos da infância estão guardados inúmeros papéis, revistas, jornais e partes do processo que Stefany estuda com afinco. Ela passou a ir ao escritório da advogada e amiga da família Renildes Baia, que atua como pro bono no caso, ou seja, sem receber honorários.

Uma vida de luta

Funcionária pública concursada, nem todos que convivem com Stefany sabem da história que ela e sua família carregam. A jovem não tem problemas em contar detalhes de sua convivência com o pai, de sua não convivência e de tudo que fizeram até aqui, mas prefere manter a discrição do caso. “Acho que não tem contexto, não é algo que se conta no cafezinho. Imagina eu chegar e falar: olha gente, tenho uma história legal, meu pai está preso”.

Os familiares lutam de maneira quase silenciosa e venceram uma grande batalha. Após o judiciário paraense determinar que faltava um requisito para que a sentença fosse revista, os ânimos e objetivos de Stefany e da advogada que milita no caso mudaram.

cesio3“A gente precisa agir com estratégia. Enquanto tentamos judicializar a prova para a revisão criminal, sabíamos que a progressão de pena estava próxima. Fizemos também o pedido de transferência, que para nossa surpresa transcorreu até de maneira fácil”, diz Stefany.

A transferência de Césio aconteceu em 2014, no fim do ano. Desde então, os encontros que demandavam grande esforço e aconteciam em intervalos muito grandes de tempo podem acontecer de 15 em 15 dias.

“Antes eu via meu pai uma vez em cinco anos e agora eu vejo meu pai a cada duas semanas, não tem nem como comparar a melhora”, conta a moça, que descreve os diálogos com o pai na prisão.

“Ah, falamos de tudo. Conto para ele como estão os estudos, os amigos, meu avô. Damos notícias do que acontece aqui fora. Mas falamos muito também do processo. Das novidades do andamento na Justiça e pensamos juntos no que fazer, em como dar o próximo passo”, explica.

A vida marcada pelo que a família considera um grande erro judicial impossibilita que as visitas tenham um tom diferente. Mesmo a transferência de Césio para o Espírito Santo,  que seria a maior vitória da família desde que o médico foi preso pela última vez, em 2009, fica ofuscada por questões jurídicas, como conta Stefany.

“Tínhamos muita expectativa nessa vinda. Em parte ela foi atingida, mas em parte não. A gente achou que o andamento do processo aqui funcionaria mais rápido, mas a Justiça tem alguns problemas de morosidade mesmo. Isso acaba dificultando tudo”, lamenta Stefany, que ainda sonha com a participação do pai nas solenidades de formatura dela, previstas para julho deste ano.

A colcha de retalhos jurídicos

Para entender a atuação do judiciário no caso, é preciso seguir o passo a passo das idas e vindas do médico capixaba à prisão, seja no Pará ou no Espírito Santo.

Investigados como uma quadrilha de tráfico de órgãos, o argumento da promotoria mudou e os acusados no caso dos Meninos Emasculados de Altamira, entre eles o capixaba Césio, foram considerados parte de uma seita satânica, que cometia os crimes como ritual.

Em 2003 eles foram julgados e condenados. Pouco tempo depois, no mesmo ano, o assassino em série Francisco das Chagas confessou os crimes, inclusive aqueles pelos quais Césio já cumpria sentença.

A criminóloga Ilana Casoy, especialista em assassinos em série no Brasil que acompanhou as investigações acerca de Francisco das Chagas resume o caso. “Imagina uma pessoa que já não tinha mais saída, e só rezava para que o verdadeiro assassino aparecesse e confessasse, o que já seria um milagre. O que ele mais deseja acontece, e com tudo isso, ainda não consegue sair da cadeia”, ponderou.

A defesa de Césio pediu a revisão da sentença dada pelo júri. De acordo com o doutor em direito Thiago Fabres de Carvalho, o ordenamento jurídico entende que a revisão criminal deve existir pela gravidade da condenação de um inocente.

Porém, a revisão de Césio não foi aceita pela falta de judicialização da prova. Ou seja, as confissões realizadas por Francisco das Chagas às polícias Civil e Federal, além de revistas e programas de TV e também da promotora que acompanhava o caso não foram  suficientes. O assassino deveria confessar também para um juiz de Direito.

Fabres, no entanto, não considera o motivo plausível e explica. “Negar a revisão criminal pelo fato da prova não ter sido produzida em juízo é uma coisa injusta. O ideal é que ela fosse judicializada, mas a apuração feita pela polícia e a confissão realizada na esfera policial é capaz de produzir efeito jurídico, em especial quando é para beneficiar o acusado em nome do princípio da presunção de inocência”, exemplifica.

A criminóloga Ilana Casoy também levanta questionamentos sobre o papel da promotora que acompanhou o caso na época da confissão de Chagas. “O Chagas foi ouvido pela Polícia Federal com a promotoria presente. Na Justiça, depois, ele mudou de ideia, alegou que foi torturado. Mas com a riqueza de detalhes que ele forneceu, aliado aos poucos depoimentos que ele deu em juízo, não dá pra alegar essa hipótese da judicialização para impedir um novo juri”.

O STF, o judiciário do Pará e os descumprimentos do habeas corpus

As partes que defendem a revisão de pena de Césio alegam que é preciso questionar não só a promotoria, mas a atuação do judiciário do Pará em diversos pontos do processo contra ele. Um dos questionamentos é o fato de que Césio foi preso em 2009 obedecendo a um mandado de prisão de 2005, documento anterior a um habeas corpus expedido no mesmo ano pelo Supremo Tribunal Federal, assinado pelo ministro Marco Aurélio Mello.

HC

No habeas corpus, mantido por decisão unânime em 2010, o ministro entendeu pela não execução da pena, ou seja, a decisão mantinha Césio solto.

Esta, no entanto, é apenas a primeira situação de desrespeito da Justiça do Pará em relação às decisões do STF, que cobrou a Justiça do paraense pelo menos mais duas vezes.

Em 16 de março de 2010, 14 dias depois do deferimento do pedido de habeas corpus, o juiz da 15ª Vara Criminal de Belém mandou suspender a execução da pena, mas não expediu a ordem de soltura. A execução da pena (a prisão)  foi suspensa, mas os réus continuavam presos.

Em maio de 2010 o STF pediu esclarecimentos ao Tribunal de Justiça do Pará. “Embora a Primeira Turma desta Corte tenha deferido a ordem de habeas corpus, o paciente permanece preso (…) apesar de formalmente comunicado da ilegalidade da prisão, o Juízo do 3º Tribunal do Júri – 15ª Vara Penal da Comarca de Belém, Estado do Pará, insiste em manter o paciente sob custódia”, lê-se no documento enviado pelo STF.

Em resposta ao questionamento, o juiz Heyder Tavares da Silva Ferreira expediu um alvará de soltura ordenando que fossem postos em liberdade o médico capixaba e os outros dois acusados. Porém, este documento nunca foi assinado ou cumprido.

Para a filha de Césio, a situação não faz sentido. “A assessoria do STF consultou o site do TJ/PA em abril de 2011 e descobriu informações que indicavam o trânsito em julgado do processo antes mesmo do julgamento do habeas corpus em março”, se indigna a estudante, que questiona:

“Não fazia sentido haver transitado em julgado. Se isso tivesse ocorrido bastava o juiz ter informado ao STF sobre isso assim que tomasse ciência do habeas corpus. E mais absurdo ainda, para que publicar uma ordem de soltura?”, questiona a filha do médico. 

A defesa de Anísio Ferreira, médico condenado junto com Césio, interpelou o tribunal o mesmo questionamento de Stefany. O juiz respondeu justificando que não libertou os réus porque o STF não havia determinado expedição de alvará de soltura.

Também respondeu que o alvará de soltura de julho de 2010 foi confeccionado pela Secretaria Judicial e cadastrado no sistema do tribunal como produção de documento e, como não havia sido finalizado por qualquer servidor ou magistrado, não possuía qualquer efeito. O despacho que deslegitima o alvará, entretanto, não cita a questão do trânsito em julgado da execução da pena.

Em novembro de 2011, a família e a defesa de Césio se depararam com uma certidão de que não havia trânsito em julgado. A certidão suscitou outras dúvidas da defesa do médico “Ora, se não havia trânsito em julgado, não haveria por quê o meu pai continuar preso”, pondera Stéfany.

Em 2012, mais um desencontro. Foi publicado no site do TJ/PA que o trânsito em julgado da sentença de Césio ocorrera em 2006.

“Três anos antes da prisão do meu pai. Quatro anos antes do julgamento definitivo do habeas corpus 87.236, que garantia sua liberdade. Seis anos antes de publicarem no portal. E em todos esses anos ninguém sabia? Se o judiciário fosse minimamente organizado já poderíamos ter pedido a revisão do caso desde 2006, ou, na pior das hipóteses em 2009, quando a prisão foi realizada”, questiona mais uma vez Stéfany.

Em busca do tempo perdido

Passados mais de nove anos de reclusão de Césio, a família e a defesa do médico mudaram a estratégia. Com 1/6 da pena cumprida, seria possível pedir a progressão de regime.

Tirá-lo da cadeia tornou-se prioridade. Mesmo que o status de condenado continue, reinseri-lo no convívio dos familiares é a estratégia adotada pela defesa no momento.

“Em 2015 ele já tinha atingido o tempo. Seria muito melhor para todos nós, porque ele poderia ter, em parte, uma vida normal. Mas alguns meses depois mudou o juiz da vara de execuções e ainda houve greve no judiciário. Só nisso perdemos seis meses”, disse Stefany.

Marcelo Brandão confia na capacidade da irmã para poder ver o pai livre novamente, sem o estigma de criminoso. “Eu boto muita fé na minha irmã, ela é muito inteligente. Ela tem que parar um trem em movimento e fazer ele andar para o outro lado. É um trabalho hercúleo, mas eu confio muito nela”, afirma.

Enquanto isso, Césio segue no presídio de segurança máxima de Viana enquanto aguarda o julgamento da progressão de regime. O caso corre na 2ª Vara de Execuções Penais de Viana.

“Eu tenho esperança. Senão não levanto da cama”, relata Marcelo.  “Vamos ver se a gente consegue vê-lo solto, pelo menos para a minha formatura”, finaliza, com esperança, a filha do médico.

Matéria publicada em 05 de maio de 2016