Silêncio, vergonha, estigma. Vítimas de estupro oprimidas pelo medo de retaliações, julgamentos sociais e insuficiência do poder público em prestar auxílio.
Elas não são poucas.
Silêncio, vergonha, estigma. Vítimas de estupro oprimidas pelo medo de retaliações, julgamentos sociais e insuficiência do poder público em prestar auxílio.
Elas não são poucas.
Uma reportagem de Katilaine Chagas ([email protected]) e
Mayra Bandeira ([email protected])
Ilustrações: Arabson e João Paulo Rocetti
Confira ao longo da reportagem vídeos com relatos de vítimas de abuso sexual lidos por jornalistas de A Gazeta
Histórias silenciadas porque geralmente não têm testemunhas, e pelo estigma que deixam em suas vítimas, marcadas pela dor e constrangimento que levam ao sofrimento da solidão, reforçando uma cultura do estupro. “Não dói o útero, e sim a alma”, disse a menina de 16 anos vítima de um estupro coletivo estarrecedor na semana passada, quando 33 homens, armados, doparam e violentaram a jovem numa favela do Rio de Janeiro.
Muitas desistem de denunciar e de pedir ajuda, e temem o tratamento que receberão do poder público, seja no primeiro atendimento policial ou na rede de saúde, seja quando lhes é negado o acesso ao abortamento legal, direito previsto em lei desde 1940.
As vítimas têm, sim, dificuldade de falar sobre o assunto. “Revelar para outra pessoa uma situação de abuso sexual é muito difícil para a maioria das mulheres. Mesmo que seja uma pessoa de sua confiança. Esse é um fenômeno presente no mundo todo”, afirma o obstetra Jefferson Drezett, chefe da equipe responsável pelo abortamento legal do Hospital Pérola Byington, centro de referência em todo o país em atendimento a vítimas de violência sexual, localizado em São Paulo.
Outra marca desumana do estupro é o risco de não restarem provas físicas da violência e assim dificultar a punição do criminoso. Se reagir, um vestígio do agressor pode aumentar as chances de justiça, mas a resistência aumenta o risco de morte. Não reagindo, são menores as chances de o agressor lhe deixar marcas, mas são maiores a de sair viva.
“Quando ela ficou quieta porque estava com medo porque o cara tinha uma arma, porque ele disse que se ela não transasse com ele, ia estuprar a filha dela, nesses casos é que a caracterização é mais difícil”, exemplifica Denise Terra, médica-legista aposentada.
É o caso da Leila, 20, sequestrada aos 17 com a irmã mais nova e uma amiga por um homem que a todo tempo as ameaçava com um facão. “Ele foi para cima da minha irmã. Foi então que me ofereci. Ela era uma menina, tinha 15 anos, não podia passar por aquilo.”
E quando as vítimas são crianças? “Na criança o complicado é que na maioria dos estupros não há penetração. A maioria dos abusadores tocam a região do corpo e pedem para as crianças fazerem outras coisas. A criança tem o relato, mas você não acha às vezes nada. Aí não tem prova material desse crime”, lamenta Denise Terra.
O Código Penal Brasileiro descreve estupro como ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Se essas palavras forem difíceis de entender, podem ser compreendidas assim: se o contato sexual, com penetração genital ou não, não tem consentimento de ambas as partes, é estupro.
E isso se a vítima for maior de 14 anos. Com menos que isso, não há nem que se falar em permissão ou em “relação consensual”. É estupro e ponto. E o nome correto é estupro de vulnerável. Nesse grupo, entram também vítimas que por enfermidade ou deficiência ou qualquer outro motivo não tenham discernimento para a prática e, por isso, não possam oferecer resistência. Ou seja, dizer que a vítima estava bêbada não é desculpa para se permitir ter qualquer contato sexual com ela. É crime.
“A lei nesses casos é sábia. Quando se trata de hipossuficientes, eles não têm capacidade de discernir se querem ou não representar queixa. Isso independe também da vontade dos pais ou de algum responsável”, destaca Lorenzo Pazolini, titular da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA).
Relação de poder
Há quem queira crer que o que leva um pai a estuprar a filha, um marido a violentar sua mulher, um ser a abusar de outro é alguma doença. A constatação triste é de que, em boa parte dos casos, a motivação passa longe disso.
A coordenadora do curso de Psicologia da UVV, Luciana Bicalho, cita estudos que até mostram que alguns agressores foram vítimas de violência na infância: “Mas isso não explica a totalidade de condições de violência contra a mulher. Então parte disso fica melhor compreendido por causa de questões sociais que produzem a ideia da mulher como um objeto de posse e o homem nesse lugar de privilégio”.
Isso explicaria, em parte, casos de estupro executados por quem não tem histórico de violência, mas o fez quando achou oportuno. Casos de homens que violentam mulheres em festas universitárias, após a vítima ingerir bebida alcoólica, são exemplos disso.
“Na ação do estupro está colocada uma posição de poder sobre o outro. E muitas vezes é esse poder exercido sobre o outro que mais dá prazer. Não é nem o ato sexual em si”, avalia a psicóloga Mirian Cortez, gerente de Proteção à Mulher, da Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp).
“Tem a relação de poder tanto entre os gêneros quanto a do poder hereditário, do pai sobre o filho”, acrescenta a médica psiquiatra Andressa Perobelli.
É consenso entre profissionais que lidam com essa violência que não há perfil de vítima. Atinge mulheres de todas as classes sociais. A diferença é que famílias mais pobres acabam mais em serviços de referência de saúde e entram, assim, nas estatísticas. As com mais dinheiro vão para consultórios particulares e são atendidas em sigilo, para evitar o estigma. Há ainda as que não denunciam por vergonha ou por medo.
Os números oficiais disponíveis no Espírito Santo para o crime de estupro são conflitantes e variam de acordo com o órgão. Números subnotificados e parciais colocam o Espírito Santo numa posição “confortável” na estatística, como o Estado onde há menos estupro no Brasil, reforçando a invisibilidade do crime.
Dados da Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA) ligada ao Ministério da Saúde apontam que foram registrados no Espírito Santo 492 casos de estupro em 2015. Sendo que na maioria deles, 88% foram mulheres, adolescentes nas faixa de 10 a 19 anos (48%), e de raça/cor parda (38%). Em 2014, os dados foram de 406 ocorrências.
Por outro lado, o levantamento mais recente do Anuário Brasileiro de Segurança Pública indica 203 casos também em 2015, com base na Secretaria Estadual de Segurança Pública (Sesp). Em 2014, foram 238 denúncias.
A reportagem usou os dados da 9ª edição do anuário, considerando as informações da Sesp. Os índices são assustadores e mostram o registro de 47.646 casos de violência sexual no país, segundo a polícia.
Já o levantamento feito pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) aponta que 418 ocorrências chegaram até as delegacias em 2014 no Estado.
Mas não são todas as vítimas que procuram a polícia ou atendimento médico. No ano passado, o Fórum Brasileiro de Segurança (que produz o anuário) estimou que apenas 35% dos crimes sexuais são notificados.
Porém, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), esse percentual é ainda menor, com apenas 10% de estupros denunciados.
Perfil de vítima não existe, mas os profissionais que lidam com a violência sexual apontam padrões de ataque, em que o determinante é a idade. “A maioria dos casos de violência sexual contra crianças acontece dentro do espaço privado, principalmente a residência da criança e do agressor”, explica obstetra Jefferson Drezett.
O agressor da mulher adulta pode ser tanto alguém íntimo ou desconhecido, quando acabam atacadas enquanto estão nas atividades cotidianas na rua. “Com adolescentes, vai ser parecido com o da mulher adulta se ela estiver na segunda metade da adolescência ou o da criança, se estiver na primeira metade”, conclui Jefferson Drezett.
Olga, 37, foi estuprada quando ia para o trabalho. Primeiro, ele anunciou o assalto. O pior veio em seguida. “Ele começou a me arrastar pela rua, e eu suplicando que ele me deixasse ir embora. Falava cada vez mais alto para ver se alguma pessoa me ouvia. Mas nada. Tentava conversar, mas ele ficava cada vez mais irritado e ficava passando a faca em mim. Depois, me arrastou até um terreno baldio e mandou que eu tirasse minha roupa.”
O sentimento comum à maioria das vítimas é o de culpa. É usual se perguntarem o que poderiam ter feito para evitar. “Infelizmente, até hoje vivo com essa culpa”, relata Dandara, 43, estuprada por três homens quando era adolescente.
Esse sentimento também silencia a vítima e restringe seu impulso de procurar ajuda. “Isso não é nada mais, nada menos que a extensão de um preconceito que está na sociedade. Que diz ‘ah, mas a mulher com roupinha curta…’. E perde-se de vista que, por mais provocativa que a mulher esteja naquele momento, quem cometeu um crime foi o estuprador”, reforça Getúlio Souza, psicólogo do Programa de Violência às Vítimas de Violência Sexual (Pavivis), do Hospital das Clínicas, em Vitória.
Ou seja, se há uma certeza em todas essas histórias é a de que a culpa nunca, nunca mesmo, é da vítima.
Familiares de vítimas de estupro devem ficar cientes de que, apesar da crença popular, nem sempre o tempo cura tudo. Se não tiver tratamento, as consequências psicológicas podem perdurar por décadas. Dandara foi estuprada aos 17 anos e até hoje, aos 43, passa por fases de profunda depressão. “As pessoas dizem ‘tem mais de 20 anos, você tem que levar a vida para a frente’. Eu tento.”
Em contrapartida, é na própria família, nos amigos da igreja e na fé em Deus que ela encontra forças para tocar a vida. “As pessoas da igreja e da minha família me ajudam muito”, afirma Dandara.
O impacto que a violência sexual terá vai variar de acordo com a vítima. Mas algo é certo: ter ajuda psicológica é fundamental para lidar com o trauma. “É pouco provável que uma pessoa que passe por uma situação assim se recupere totalmente sem nenhum tipo de auxílio”, diz a psicóloga Luciana Bicalho.
No Estado, o local de referência é o Programa de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual (Pavivis), que funciona no Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes (Hucam), em Vitória. De qualquer forma, por lei, qualquer serviço de saúde pública tem que ser capaz de atender vítimas de estupro ou, no mínimo, dar orientação sobre onde buscar ajuda.
Palavras
Cuidado primário que familiares e profissionais que vão atender a uma vítima devem ter é de não reforçar o sentimento de culpa. “As suas palavras ou podem ser avassaladoras ou um bálsamo de salvação para aquela pessoa”, afirma Getúlio Souza, psicólogo do Pavivis.
“Muitas vezes alguns profissionais não preparados, que estão atuando na rede que deveria fornecer suporte, acabam reforçando essa ideia de que a mulher de algum modo foi responsável por aquilo. Isso só piora a condição psíquica e emocional”, relata Luciana Bicalho.
A médica psiquiatra Andressa Perobelli cita que a curto prazo as vítimas apresentam ansiedade, insônia e despersonalização, em que o paciente tem episódios recorrentes de que o que está vivendo não é real.
Vítima tem que lidar com despreparo de funcionários públicos e com a insuficiência de estrutura para atendê-la
Depois de sofrer, talvez, a maior das violências contra uma mulher, a vítima de estupro começa outra luta para botar na cadeia seu agressor. Seja pelas características desse tipo de crime, o de geralmente não ter testemunhas, seja pela violência simbólica que enfrenta ao lidar com profissionais despreparados ou ainda pela insuficiente estrutura pública para cuidar de seu caso.
Para que a polícia comece a investigar o estupro, é obrigatório que a vítima, se for maior de 18 anos, faça a representação na delegacia, ou como é popularmente conhecido, realize o boletim de ocorrência. Se for menor de 18 anos, o próprio Ministério Público pode fazer a denúncia.
Para manter a maior quantidade de provas possíveis do crime, é essencial que a vítima procure imediatamente a polícia e realize o exame de corpo de delito. Mas esse não é o impulso inicial de quem sofre essa violência. “Para comprovar o estupro, tem que coletar material. Mas a primeira coisa que fiz quando cheguei em casa foi tomar banho. Minha vontade era passar sabão em pó, entrar numa banheira de cloro”, relata Joana, 23 anos. Ela foi violentada por um ex-colega enquanto estava inconsciente, sem condições de reagir.
Joana foi à delegacia dois dias depois da violência, após suas amigas se articularem para apoiá-la. Ela lembra detalhadamente o diálogo que teve na delegacia com um policial que a atendeu. “Aí no meio de um monte de policiais, um perguntou: ‘O que é?’. Aí eu falei: ‘Quero fazer um registro de estupro’. ‘E quando foi?’, ele perguntou. ‘Há dois dias’, respondi. ‘E você só vem agora?’, ele disse. Fiquei assim, mas fomos em frente”, conta Joana.
Ela relata que só aceitaram fazer o registro depois que ela e as amigas descobriram o nome completo do agressor e endereço de onde ocorreu o estupro.
“Entendo perfeitamente porque as pessoas não denunciam. Não é receptivo para isso. Parece que tem todo um processo que você tem que passar para poder ir embora”, lamenta Joana.
No Departamento Médico Legal (DML) de Vitória, ela ouviu de uma funcionária questionamentos sobre a veracidade de seu relato. “’Por que você veio fazer isso agora? Você tem certeza?’ E falava com um tom meio debochado”, denuncia a jovem.
Estrutura
Não é questão só de preparo profissional mas também de estrutura física. A recepção do DML é a mesma para todos os que chegam ao local: vítimas de todo tipo de violência e familiares de mortos.
A única recepção separada é a dos presos, quando vão fazer exame de lesão corporal.
“Fiquei sentada esperando. Vi passar cadáver, gente chegando para reconhecer corpo”, detalha Joana.
“Acho que há falta de humanização do atendimento. As crianças, por exemplo, ficam numa recepção conjunta com pessoas machucadas, com pais que estão chorando porque perderam um filho”, lamenta Denise Terra, que trabalhou como médica-legista no local de 1992 a 2014.
Não é incomum que as vítimas de violência sexual, ao buscarem atendimento médico e policial, se deparem com comentários que reforçam o sentimento de culpa nelas. Uma culpa que definitivamente elas não têm.
Entre as histórias levantadas pela reportagem, está o de um funcionário do DML que falou a uma vítima que, se ela estivesse indo para a igreja, ela não passaria por isso.
“Eu responderia para esse profissional que tive pacientes que foram estupradas no caminho da igreja. Não foi uma nem duas”, afirmou Getúlio Souza, psicólogo do Programa de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual (Pavivis), localizado no Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (Hucam), conhecido como Hospital das Clínicas, em Vitória.
A médica legista aposentada Denise Terra avalia que muita coisa mudou nos últimos anos sobre o atendimento a vítimas. “Melhorou muito de uns anos para cá. Quando eu saí, em dezembro de 2014, a turma que eu deixei era mais renovada. O pessoal que veio entrou mais comprometido”, garante a médica.
Desgaste
Mas para a vítima há ainda o desgaste de ter que voltar ao ambiente policial para garantir o trâmite de todo o processo. “As mulheres têm vergonha de se expor nessa situação, têm medo do que a família vai pensar ou o próprio companheiro. Porque de fato é uma exposição, a pessoa tem que vir à delegacia, fazer a denúncia, às vezes precisa de mais dados e daí ela tem que voltar. Quando a gente consegue prender algum suspeito a mulher tem que voltar e fazer o reconhecimento, isso é desgastante” avalia a delegada Michele Meira, titular da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), de Cariacica.
“Desde o estupro, tive que ir em delegacia algumas vezes, ver Ministério Público, advogado”, confirma Joana.
A Secretaria Estadual de Segurança Pública e Defesa Social (Sesp) foi procurada para comentar sobre o treinamento oferecido aos policiais que lidam com as vítimas de violência sexual. A resposta veio por meio da Gerência de Proteção à Mulher (GPM), uma pasta criada em março deste ano, que tem justamente a proposta de capacitar os profissionais que atuam no enfrentamento da violência contra a mulher.
Segundo a gerente do GPM, Mirian Cortez, as orientações estabelecidas integram os projetos desenvolvidos com as polícias Civil e Militar e estão em acordo com diretrizes nacionais que reconhecem a importância da atenção e de não fazer a vítima reviver seu drama ao fazê-la relatar a violência várias vezes, por exemplo.
“Os atendimentos policiais que fogem a essas orientações são inadmissíveis e é importante tomarmos conhecimento disso para que os responsáveis sejam identificados. Isso é essencial para evitar que esse profissionais reproduzam, em sua atuação, práticas e valores naturalizados em nossa cultura muito machista e patriarcal”, avalia.
Outra demanda foi enviada à assessoria da Sesp, sobre o serviço de atendimento do Departamento Médico Legal (DML) nos casos de estupro, porém, até o fechamento desta edição não houve envio de resposta.
Os questionamentos foram em relação à estrutura do órgão. Hoje, vítimas de violência sexual esperam atendimento em uma sala próximo ao necrotério do local, segundo relatos.
Existe uma proposta da Secretaria Estadual de Saúde (Sesa) em parceria com a Sesp, que torna opcional a ida e/ou encaminhamento das vítimas ao DML. A intenção é de que o exame necessário para investigação possa ser feito em qualquer outra unidade médica cadastrada pelo órgão.
Na falta de provas físicas ou de testemunhas, a palavra da vítima ganha força nas decisões judiciais
Sem testemunhas e em muitas situações sem vestígios físicos, o crime de estupro tem contra si algo que ganha cada vez mais força em decisões judiciais: a palavra da vítima.
“Normalmente o estupro acontece na clandestinidade. Então nós temos que dar credibilidade à palavra da vítima. Até para alicerçar um decreto condenatório”, diz a delegada Tânia Zanoli.
“Inexistindo testemunhas, inexistindo a prova, os tribunais superiores vêm entendendo que a palavra da vítima tem um peso especial nesses casos. Isso é posicionamento forte no STJ (Superior Tribunal de Justiça). O que não quer dizer que todos os juízes vão aderir a este posicionamento. Claro que tudo vai depender do caso concreto”, afirma o advogado criminalista Raphael Boldt.
De fato, no STJ há registrado 156 acórdãos, decisões tomadas por um colegiado de ministros do tribunal, em que o testemunho da vítima foi fundamental para a condenação do acusado.
“A jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça há muito se consolidou no sentido de que, em se tratando de crimes contra a liberdade sexual, a palavra da vítima tem alto valor probatório, considerando que delitos dessa natureza geralmente não deixam vestígios e, em regra, tampouco contam com testemunhas”, defende um dos 156 acórdãos sobre o tema no tribunal.
Vestígios
A valorização do depoimento da vítima de estupro ganha força em cima de uma das crueldades desse tipo de crime, que é a possibilidade real de não ser identificado nenhum tipo de vestígio físico. A médica-legista Denise Terra explica que em situações em que a mulher foi estuprada sob a ameaça de uma arma, por exemplo, e compreensivelmente não reage ou se o agressor maquinou a situação de forma a não deixar marcas, é difícil caracterizar a violência sexual. E, nesse caso, é a palavra da vítima contra a do agressor.
O Código Penal Brasileiro prevê que crimes de estupro se caracterizam pela obrigação, por violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou a permitir que “com ele se pratique outro ato libidinoso”.
Ou seja, mesmo que não haja penetração, o estupro pode ser caracterizado. Nesse caso, a análise de outros fatores é fundamental para comprovar a violência, principalmente em casos de estupro de vulnerável, vítimas menores de 14 anos ou vítimas que, por enfermidade ou deficiência mental, não tenham o “necessário discernimento para a prática ou ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”.
O relato da vítima, alterações no comportamento, mudança no rendimento escolar são fundamentais para comprovar as agressões que não deixam vestígios. E os depoimentos são chocantes.
“Na CPI da Pedofilia, havia o relato de uma criança que dizia que ia para a casa dele (o abusador) e que recebia comida por uma janelinha. Ou seja, não era casa, era motel. Elas não tinham percepção do que era”, relata o defensor público Geraldo Elias Azevedo, coordenador penal da Defensoria Pública do Espírito Santo.
Ressalvas
Apesar do amparo legal, não é simples aplicar esse dispositivo. “Costumamos ver alguma crítica a esse tipo de posicionamento. Principalmente quando você tem crianças envolvidas. É muito delicado condenar alguém apenas com base na palavra da vítima”, pondera Raphael Boldt.
“Temos que fazer uma defesa muito técnica. E muitas vezes os relatos nos chocam também”, lamenta o defensor.
Por mais repudiado que o crime de violência sexual seja, o acusado tem, e deve mesmo ter, direito à defesa. Mas como os profissionais encarregados dessa missão lidam com isso? Longe de tentar a todo custo garantir a absolvição de um acusado que possui contra si todo tipo de prova, a defesa se concentra principalmente em garantir um julgamento com resultado justo, do ponto de vista legal.
“É um grande desafio. Começamos com o estigma de fazer a defesa de um acusado de estupro. Elas geralmente têm razão. Muitas das vezes o trabalho da defensoria é para garantir a legalidade do processo. Vamos trabalhar para que o acusado receba uma pena justa”, descreve Geraldo Elias Azevedo, coordenador penal da Defensoria Pública do Espírito Santo.
“A maioria não quer fazer a defesa, pelo que ele representa, pela dificuldade da defesa e pela questão moral também”, reconhece.
Depois de terem seus corpos violados, as vítimas de estupro são obrigadas reviver a dor quando descobrem que estão grávidas. O que é possível fazer? Algumas nem sabem que, há 76 anos, têm o direito de interromper a gravidez assegurado por lei. Outras, por medo de serem julgadas e criminalizadas, acabam se calando ou recorrendo a métodos clandestinos.
“Quando falamos de interrupção da gravidez prevista em lei, é sinal de que tudo o que tínhamos que fazer antes falhou. Falhamos na educação, na segurança e no cuidado com essa pessoa. É o último dos recursos que a gente tem para minimizar os efeitos de uma violência física”, reconhece a coordenadora da Vigilância Epidemiológica da Secretaria Estadual de Saúde (Sesa), Edileusa Cupertino.
No Espírito Santo, dois hospitais cadastrados pelo SUS têm autorização para fazer o abortamento legal. Um fica no Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (Hucam), conhecido como Hospital das Clínicas, em Vitória. O outro é o Hospital São José, em Colatina. Em 2015 foram realizados 16 abortos no Hucam. Este ano, foram seis. No Hospital São José, em Colatina, foram 6 procedimentos no ano passado e nenhum registro neste primeiro semestre de 2016. O procedimento pode ser feito com até 22 semanas desde que o peso fetal seja menor que 500 gramas.
Por nota, o Ministério da Saúde informou que há no Brasil 587 serviços voltados à Atenção às Pessoas em Situação de Violência Sexual. Informou ainda que o abortamento legal pode ser feito em todos os estabelecimentos do Sistema Único de Saúde (SUS) que possuem serviço de obstetrícia.
Lei
O artigo 128 Código Penal Brasileiro permite, desde 1940, a interrupção de gravidez por médicos em dois casos: quando não há outro meio de salvar a vida da gestante e se a gravidez resultar de estupro e o aborto tiver consentimento da gestante ou de seu representante legal, em caso de incapacidade. E por decisão do Supremo Tribunal Federal, o aborto é permitido em caso de anencefalia do feto.
Duas normas técnicas orientam o atendimento médico à vítima de violência sexual: Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes e Atenção Humanizada ao Abortamento. E nenhuma delas obriga a passagem por uma delegacia para oferecer o atendimento, embora traga orientações para uma procura posterior ao processo policial.
“A gente pede e muito que o primeiro lugar que uma vítima de violência sexual deve procurar é uma unidade de saúde para que seja cuidada. Ali, ela vai receber toda a atenção necessária e o atendimento emergencial. Com isso, podemos em até 72 horas evitar uma gravidez indesejada, a instalação de doenças sexualmente transmissíveis, como a hepatite e até o vírus da Aids”, alerta Edileusa.
Toda e qualquer unidade da rede de saúde pública tem a obrigação de prestar atendimento emergencial, integral e multidisciplinar à vítima de violência sexual, tanto para tratamento de lesões decorrentes da violência quanto para a prevenção de doenças e anticoncepção de gravidez quanto para tratamento psicológico. E deve encaminhar para o serviços públicos especializados para fazer o abortamento legal, quando for o caso. É o que determina a lei nº 12.845/2013.
O projeto de lei nº 5.069 é de 2013, mas desde o ano passado, quando foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, vem angariando vozes contrárias às suas propostas, que dificultam o acesso ao aborto legal em caso de estupro ao transformar em crime induzir ou auxiliar uma gestante a abortar, além de de tornar obrigatória a exigência de exame de corpo de delito e comunicação à autoridade policial. Hoje basta a palavra da vítima.
O projeto é do deputado federal afastado Eduardo Cunha (PMDB), acusado de atrapalhar as investigações da Lava Jato, em que é réu em uma ação e investigado em vários outros procedimentos.
“A lei transforma uma situação de emergência condicionada à autorização da polícia. Isso seria a maior vergonha que uma nação poderia ter de como tratam sua cidadã”, defende o obstetra Jefferson Drezett, chefe da equipe responsável pelo serviço de abortamento legal do Hospital Pérola Byington, em São Paulo.
A diretora jurídica da Artemis, ONG que defende direitos das mulheres, pensa parecido. “É um retrocesso. É direito da mulher desde 1940 não querer carregar o fruto de um estupro.”
Como uma das razões para ser contra a lei, o obstetra Jefferson cita a questão de segurança da vítima. “Se isso se tornar uma condição para a mulher realizar o aborto legal, a mulher que estiver ameaçada de morte pelo agressor, e elas não são poucas, não vão denunciar. E ela não indo, não vai ser atendida e vai condenar a mulher a todas essas consequências. Isso é a perversidade da ignorância desse projeto de lei”, diz o obstetra.
O projeto aguarda votação pelos deputados federais no plenário da Câmara.
Com a experiência de 25 anos de trabalho como obstetra do Hospital Pérola Byington, em São Paulo, Jefferson Drezett fala aquilo que vítimas de violência sexual sentem na prática. Os serviços de saúde do país não estão preparados para atendê-las, embora sejam obrigados por lei a isso. Pior, quando procuram ajuda, lidam com a desconfiança sobre suas histórias de dor e o preconceito por não quererem manter uma gravidez forçada. “A mulher brasileira não pode ser tratada como uma mentirosa.”
O Pérola é referência nacional em atendimento a vítimas de estupro e procedimento de aborto legal. No local, que conta com equipe de psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, foram atendidas 50 mil vítimas em 25 anos. Ele esteve em Vitória para participar do Congresso Internacional de Saúde da Criança e do Adolescente.
Espírito Santo
Tenho pelo menos um caso do Espírito Santo. É do ano passado. Ele segue mais ou menos as características de outros que vêm de outros estados. São mulheres que não encontraram resposta no seu estado de origem a uma demanda que elas tinham. Se isso corresponde ou não ao atendimento naquele estado, não tenho como dizer.
Procura
A maioria das mulheres que sofrem crime sexual não busca por ajuda, tanto policial quanto de saúde. Na policial, vai depender de qual seja a expectativa dela de como vai ser atendida, se acredita que o agressor possa ser identificado e responsabilizado, quais são as consequências legais de ir à delegacia, inclusive dos desdobramentos judiciais. Na saúde, talvez seja a falta de uma perspectiva clara de que essa violência sexual, mesmo que não tenha provocado danos físicos, tenha impactos grandes para a saúde dela.
Socorro
Ao não buscar esse atendimento, essas mulheres não vão poder receber medidas de intervenção que poderiam reduzir esses danos e evitar agravos.
Gravidez
A maior parte não vai buscar ajuda. E é por isso que ainda temos, mesmo com a disponibilidade de anticoncepção de emergência, um grande número de mulheres que chegará aos serviços de saúde grávidas dessas circunstâncias. É um processo muito mais complexo do que a gente imagina. De toda forma é muito, muito difícil para essas mulheres.
Estado
O problema passa também pela incapacidade e pela ineficácia dos serviços públicos de saúde em oferecer essas medidas de proteção. Temos uma das melhores normativas do mundo, do ponto de vista da qualidade, dos procedimentos, do embasamento científico, da consistência dessas medidas. Ela é elogiadíssima. Mas mesmo assim os serviços de saúde brasileiros não têm garantido esse atendimento.
Pérola Byington
No Pérola, chegam cerca de quatro mil casos de estupro por ano. Metade vêm de municípios vizinhos. E estou falando da região metropolitana de São Paulo que, em tese, deveria estar dentro do cenário brasileiro com uma certa posição de privilégios. Imagina então num estado mais empobrecido.
Direito/Desrespeito
O que acontece na prática é que as mulheres ainda são muito desrespeitadas no seu direito enquanto cidadãs de terem um atendimento tecnicamente adequado. O serviço de saúde não está oferecendo nada a não ser o seu dever ético e legal. Os serviços de saúde não estão oferecendo a essas mulheres piedade, bondade ou generosidade. Nem é papel deles. O que eles deveriam estar oferecendo é a garantia de acesso a algo que a essas mulheres é de direito do ponto de vista constitucional. Esse sistema que se omite é o mesmo que, quando essa mulher está grávida de uma violência, viola de uma maneira assustadora o direito de realizar o aborto em condições legais e seguras. Não cabe ao serviço de saúde negar o atendimento.
Objeção de consciência
O profissional de saúde tem o direito ético e legal de escolher se ele vai ou não realizar o aborto. Chamamos de objeção de consciência. Isso não quer dizer que aquele hospital, que aquele gestor que aquele município, que aquele estado não tenha a obrigação de organizar um serviço e providenciar um médico para praticar o aborto.
Suicídio
No Pérola, 25% dos casos atendidos apresentam ideações suicidas. O serviço de saúde, o delegado de polícia, a autoridade pública tinha que ter ciente e claro que a cada quatro mulheres que entram a sua porta e sentam a frente daquele profissional, uma está pensando persistentemente em suicídio como uma maneira de resolver a sua situação. 85% das mulheres atendidas no Pérola com depressão. 100% com transtorno de estresse pós-traumático.
Mentirosa
Todas as avaliações (antes do procedimento) não são para verificar se uma mulher mente ou não mente. Porque a mulher brasileira, por um princípio de respeito constitucional, não pode ser tratada como uma mentirosa até que se prove o contrário.
Fraude
Mas se nesse processo encontrarmos algum indicador de que seja uma falsa comunicação de um crime sexual, claro que o serviço de saúde tem toda responsabilidade de negar o procedimento.
Aborto clandestino
No Pérola, fazemos de quatro a cinco procedimentos por semana. Não há fila. É um procedimento que poderia estar na rotina de qualquer instituição. Com 800 mil a 1,2 milhão de abortos clandestinos por ano no país, se as mulheres estivessem fazendo isso (mentindo para abortar), era para haver fila. E essas filas não existem.
Pós-aborto
Tem que ter acompanhamento. Não é comum que elas voltem. Há questões de territorialidade, como no caso da paciente do Espírito Santo. A maioria das mulheres demonstram sensação de alívio.
No início, ele era “um cara muito engraçado”. Todo mundo gostava dele. “Fazia todas as nossas vontades. Hoje sei que queria nos conquistar, ganhar nossa confiança”, lembra Tarsila, 36 anos, sobre o lamentável episódio em que foi, aos 13, vítima do marido de sua avó.
A história de Tarsila reforça o triste dado de que 80% dos agressores sexuais de vítimas menores de 18 anos são pessoas conhecidas ou alguém de confiança da família, diz o delegado Lorenzo Pazolini, titular da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA).
É o caso de Cora, 31 anos, abusada na cozinha da casa do tio, aos 8, por um conhecido da família. “Era um senhor de idade. Onde eu estivesse, ele aparecia. Falava obscenidades, ficava atrás de mim. Até que um dia aconteceu.”
Crianças
Crianças e adolescentes são as principais vítimas de violência sexual no país. Dados da Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA), ligada ao Ministério da Saúde, apontam que foram registradas no Espírito Santo 492 ocorrências de estupro em 2015. Desses, 282 casos são de crianças e de adolescentes. Na maioria deles, 69,46%, meninas da faixa etária dos 10 aos 19 anos.
No Brasil, o percentual também é assustador. Crianças e adolescentes são 73% das vítimas. Ao todo, cerca de 14,9 mil foram vítimas de violência sexual no país.
“A maioria dos casos que chegam até aqui são de crianças menores de 14 anos. Elas são vulneráveis, e a maioria não tem a consciência formada, não sabe como agir e conseguir talvez de imediato se livrar daquele abusador. E algumas vão guardar isso pela vida toda. A devastação dessa violência é inimaginável”, alerta o delegado Lorenzo Pazolini.
E foi isso que aconteceu com Tarsila, violentada pelo marido da avó. “Nunca me recuperei. Aos 15 desenvolvi uma compulsão alimentar. Não queria ser bonita também. Cheguei aos 130 quilos. No meio disso, parti para a bebida. Cheguei ao ponto de beber perfume. A cocaína foi, por um curto tempo, minha companhia.”
Poder
A relação de poder que explicaria boa parte dos estupros de mulheres se estende também às crianças. “Ele (agressor) se sente oprimido pelo trabalho, pelo Estado, pela polícia, pela sociedade. O único modo que ele consegue se sentir no lugar de poder é sendo violento sexual”, explica a psicóloga Luciana Bicalho. E por que acontecem tantos casos dentro de casa? “É um lugar de intimidade, então acaba favorecendo”, conclui.
“Há a relação de poder tanto entre os gêneros quanto a do poder hereditário, do pai sobre o filho”, acrescenta a psiquiatra Andressa Perobelli.
As mulheres aparecem em menor número na lista de abusadores, mas existem e são tão articuladas quanto os homens.
“Mulheres abusadoras são bem mais difíceis de identificar quando estão agindo. Elas procuram profissões que legitimam o contato com as vítimas como babá, perueira de escola infantil, professora e monitora de acampamento. São figuras de autoridade”, exemplifica a criminalista Ilana Casoy.
Pedofilia
Pedofilia é uma doença psiquiátrica. Mas, diferentemente do que diz o senso comum, nem toda pessoa que abusa de criança é pedófila e nem todo pedófilo vai abusar de crianças. “Pedófilo é aquele que tem desejo sexual despertado obrigatoriamente por crianças ou para quem aquele estímulo é muito importante”, explica a sexóloga Denise Terra.
Apesar da doença, quem sofre dela mantém o discernimento e sabe que o abuso de crianças é ilegal e possui capacidade total de controlar o seu desejo. “Há pedófilos que são portadores da doença e que nunca abusaram de uma criança. É o que escolheu não abusar”, explica Denise Terra.
Hebert, 28 anos, tinha 13 quando se deu conta de que havia sofrido violência sexual quando era criança, por um vizinho. Ele lembrava do amigo de seus pais, um homem casado e com um filho, o levando para passear, mas não tinha noção de que o que aquele homem fez durante o passeio era proibido. Na época, Hebert viu a situação como um momento de carinho, já que seu agressor sexual não lhe deixou marcas de violência física.
“Só fui começar a perceber a gravidade daquilo quando completei 13 anos. Mas acho que fui ficar meio revoltado com a história quando tinha pouco mais, quase 18. Nessa época estava na faculdade e via vários debates sobre o assunto. Foi um tema que na época comecei a entender, ficar mais indignado e a achar um absurdo”, relata Hebert.
Diante de tantos casos de crianças vítimas de violência sexual, como o de Hebert, profissionais apontam como a educação sexual nas escolas como uma das possibilidades para ajudá-las a denunciar para alguém de sua confiança.
“Muitas crianças que são submetidas à violência sexual não reconhecem aquilo como um ato de violência. Elas acham que aquilo é uma das possibilidades de relação presentes na família”, explica a psicóloga Luciana Bicalho, coordenadora do curso de Psicologia da UVV.
Vale reforçar que não se defende que crianças sejam ensinadas a não serem vítimas, mas orientadas sobre seus direitos e onde procurar ajuda, “caso não se sinta bem com a relação que estão estabelecendo com ela”, completa Luciana.
“Às vezes os pais têm a ilusão de que a educação sexual está estimulando o interesse pela sexualidade. Muito pelo contrário. Para cada idade, você vai trabalhar de um jeito, com linguagens diferentes”, defende Luciana Bicalho.
Duas décadas depois do abuso, Hebert sente medo por outras crianças. “Hoje fico pensando em quantas pessoas podem estar sendo abusadas e ninguém está percebendo.”
A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que 16% das mulheres brasileiras sofrem estupro marital
A cultura do estupro é tão forte que não faltam mulheres com histórias tristes em que o agressor é seu próprio companheiro. Mas como prevê o Código Penal qualquer contato sexual sem consentimento é crime, inclusive os praticamos pelo namorado ou marido.
“Sempre achei que meu dever de esposa era ceder às vontades do meu marido e que o que ele fazia era direito dele. Meus familiares diziam isso. É muito duro reconhecer isso, saber que essa violência também acontece dentro de casa”, relatou Maria, 35 anos, em depoimento à polícia.
Estimativa da Organização Mundial de Saúde (OMS) aponta que 16% das mulheres brasileiras já foram estupradas por seus companheiros.
A juíza Hermínia Azoury, engajada na luta contra a violência contra a mulher, conhece bem essa realidade. “Elas não dão a nomenclatura. Elas não identificam. Mas elas sabem que elas sofrem”, explica a titular da 9ª Vara Criminal de Vila Velha e Coordenadora Estadual de Enfrentamento à Violência Doméstica do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES).
A questão cultural da mulher como posse de alguém é tão forte que não é incomum não se reconhecerem como vítimas de estupro. “Tenho muitas pacientes que são forçadas a fazer sexo com alguém que acha que ela tem obrigação de satisfazer esse alguém. Se ela não quis, é um estupro”, afirma Getúlio Souza, do Programa de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual (Pavivis), em Vitória.
Hermínia Azoury observa que, entre tantas vítimas que já atendeu, está presente uma dependência afetiva do companheiro. “Muitas delas têm essa dependência afetiva e econômica. Uma me disse uma vez que não saía porque tinha medo de perder os filhos. Elas morrem pelos filhos”, relata a juíza.
Mas ela afirma que esse tipo de brutalidade atinge mulheres de todas as condições financeiras: “Violência doméstica não escolhe classe social”.
Entre as formas de combater esse tipo de violência, ela cita políticas publicas de conscientização. Assim, quem sabe essa escala de violência possa ser interrompida e homens deixem de tratar suas companheiras com violência e mulheres consigam seguir o exemplo de Maria. “Depois de muito sofrimento, resolvi dar um basta. Não quero mais viver essa vida. Saí da cidade onde morava e vim morar em outro lugar, na tentativa de voltar a ser feliz.”
Ciodes: 190
Disque-Denúncia: 181
Plantão Especializado da Mulher (PEM): 3323-4045
Delegacia de Proteçãoà Criança e ao Adolescente (DPCA): 3132-1917 / 1916
Conselho Tutelar de Vitória: 3132-7058/7059 (Centro) e 3315-4983 (Maruípe)
Conselho Tutelar de Vila Velha: 3388-4271 / 3239-4316
Conselho Tutelar de Cariacica: 3284-4929 / 3346-6327 / 3346-6314 / 3388-1377
Conselho Tutelar da Serra: 3328-7128 / 3328-1899 / 3291-4854
Qualquer hospital conveniado ao SUS, comatendimento de urgência e emergência 24 horas
Programa de Atendimento às Vítimas de ViolênciaSexual (Pavivis) : 3335-7184, de 8h às 17 horas. Endereço: Avenida Maruípe, Vitória, no Centro Biomédico da Ufes
Todos os relatos desta reportagem são reais, mas possuem nomes fictícios para preservar a identidade das vítimas
Participaram desta reportagem: Aglisson Lopes (edição online), Geraldo Nascimento (edição), João Paulo Rocetti (vídeos e ilustrações), Sullivan Silva (vídeo) e Marcelo Franco (infografia)
Conteúdo originalmente publicado entre os dias 29 de maio e 1º de junho de 2016