A PRESENÇA DE QUEM FOI.
A DOR DE QUEM FICOU

WING COSTA
Tão permanente quanto a morte é a lacuna que ela deixa. Ao perder alguém que faz parte de nossa vida, o que nos resta é a presença da ausência. E essa sensação é maior quando a partida é inesperada, sem motivo nem razão. Ficam as fotos, as lembranças e o quarto vazio. É saber que quem estava ali não vai mais estar. “Todo Finados chove”, é a primeira lembrança de um dia marcado por lembranças. É o dia em que alguns visitam a morada dos que se foram e revisitam memórias. É o dia de lembrar da morte.
Em Hamlet, a morte é tratada como aquele “país ignorado de onde nunca ninguém voltou” e, ao utilizar essa citação, o escritor Andrew Solomon entende que não há outro assunto sobre o qual se tenha escrito tanto e sobre o qual tão pouco se tenha dito. E o processo pode se tornar ainda mais complicado quando a morte é, além de tudo, uma decisão disparada por aquele que já se foi. O suicídio é tabu. O suicídio é tabu.

Ta.bu¹ sm. Qualquer coisa que se proíbe supersticiosamente, por ignorância ou hipocrisia.

O tema é delicado, mas falar sobre suicídio é necessário. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde, 90% dos casos de suicídio podem ser prevenidos, desde que existam condições mínimas para o acesso à ajuda profissional ou voluntária, seja em caráter público ou privado. A primeira medida preventiva é aprender mais sobre o assunto. É preciso deixar de ter medo de falar sobre suicídio, derrubar os tabus e compartilhar informações apropriadas ligadas ao tema.

A OMS ainda contabiliza que aconteça um milhão de suicídios por ano em todo mundo, com taxas que variam de menos de 10 a 25 óbitos a cada 100 mil habitantes. O número é agravado ao observar que para cada suicídio há, em média, cinco a seis pessoas próximas à vítimas que sofrem intensas consequências emocionais, sociais e econômicas. Há estudos que lidam com até 50 afetados pelo suicídio.

A psicóloga Daniela Reis e Silva trata do suicídio como um evento complexo e, em um de seus artigos, esmiúça o fato do mutismo em relação a tirar a própria vida. “Na sociedade ocidental, o suicídio constituiu-se em tema interdito, em uma tentativa de completa negação da dor, do sofrer, da morte. Dessa forma, o suicídio acaba sendo envolvido por preconceito e julgamento. Por isso as tentativas são acompanhadas de sentimentos de vergonha, embaraço ou culpa e os laudos policiais são, por vezes, distorcidos, no intuito de abafar as verdadeiras ocorrências das tentativas e do suicídio. Muitas famílias ainda escondem o acontecimento, evitando falar sobre o assunto.

Pouco se fala sobre suicídio, menos ainda sobre os sobreviventes. Sobreviventes.

Fotografia: Vitor Jubini

Os sobreviventes

Aqueles que cometem o suicídio se vão e, além da saudade, deixam um imenso por quê . Os grupos familiar e social das vítimas do suicídio apresentam risco de comportamento suicida aumentado. Isso se deve em função ao próprio processo de luto, pela reação à uma situação traumática, pela possibilidade de fatores genéticos ligados a transtornos psiquiátricos, e pela possível existência de um fenômeno conhecido como transmissão transgeracional de padrão de comportamento.

A violenta e repentina morte do ente querido, além de uma ferida imensamente dolorida, torna-se um quebra-cabeças composto por vários “e se” cuja última peça sempre faltará. Só a pessoa que morreu poderia explicar, talvez, o que passou naquele derradeiro momento. O filósofo alemão Arthur Schopenhauer, em um de seus ensaios, trata o suicídio como “uma experiência, uma pergunta que o homem faz à Natureza, tentando forçá-la a responder. (…) É uma experiência desajeitada, pois envolve a destruição da própria consciência que pergunta e espera a resposta”.

As dúvidas são os golpes além do golpe. A crise além da crise. A psicóloga e terapeuta do luto Daniela Reis e Silva não encontrou estudos científicos que comprovem que o luto por suicídio demore mais para ser elaborado. Algumas pesquisas indicam a existência de semelhanças entre o luto por suicídio e o luto por outras perdas traumáticas. “No entanto, na prática clínica algumas características se sobressaem. Uma é a presença da culpa, apesar de nem todos os enlutados terem esse sentimento presente. E as perguntas. Os ‘ses’ e os ‘porquês’ “.

A psicóloga explica que o suicídio não é predizível e tudo pode depender principalmente dos fatores de proteção que a pessoa em risco tem. “Eu já trabalhei com enlutados que receberam tanto apoio que isso não passou pela cabeça, bem como outros que diziam ‘eu nunca vou fazer isso porque estou vendo o que eles estão passando’. É preciso cuidar de cada enlutado de uma forma diferente. Há os fatores de risco, mas há os fatores de proteção”.

Muitos enlutados podem encontrar, inclusive, dificuldades em admitir que a morte foi por suicídio, buscando formas de disfarçar a verdade, seja para si mesmo ou para outros parentes considerados “frágeis”. A atitude pode levar ao segredo e ao silêncio, posições tomadas para proteger não só a memória daquele que se foi, mas a integridade do que se pensa como família no momento após a perda.

Daniela Reis e Silva ainda ressalta que nem sempre é a existência do segredo que impedirá ou complicará o processo de luto, mas o próprio processo familiar que se desdobra a partir do ocorrido. Nesse viés, torna-se importante entender o suicídio como um estigma cultural, social e religioso, abraçando negativamente a compreensão dos sobreviventes e contribuindo para que a experiência seja ainda ainda mais dolorosa, devastadora e traumatizante.

As exéquias e os rituais de luto, muitos deles atrelados à práticas religiosas, esbarram na parede do tabu levantada pelo suicídio. Historicamente considerado traição por parte da pessoa que morreu e comparado com o homicídio, o ato de tirar a própria vida é agressivamente condenado, o que expõe suicida e sobrevivente aos mais diversos tipos de punição, incluindo privação de funerais, formando outra cicatriz.

Negar esse processo ao enlutado, seja por pressão de fatores exteriores ou recusa deliberada – por negação ou mecanismo de defesa – pode impedir o recebimento do apoio que se faz necessário para procurar caminhos positivos após a experiência traumática.

No século 20 a morte foi retirada do cotidiano. O lúgubre momento foi transportado para hospitais e ambientes alheios ao lugar comum a todos. Desta forma, a sociedade busca se poupar das perturbações causadas pelo fim. A morte se tornou vergonhosa. Vergonhosa, proibida e inominável, segundo o historiador francês Phillipe Àries. “No suicídio, em função do estigma, há uma falha no suporte social ao enlutado trazendo uma mágoa  por não poder, não querer ou não conseguir expressar os sentimentos”.

A penalidade é aplicada repetidas vezes, já que não há explicação para o ocorrido, um julgamento constante por parte da sociedade, que não aceita e rotula a família (e portanto os sobreviventes) como desestruturada, incapaz, desajustada ou desequilibrada, além da culpa que o enlutado carrega e a maior de todas elas e razão para o luto: a ausência.

Dor de mãe: "Pensei que não fosse aguentar"

Mariza é mãe de gêmeos univitelinos. Fábio e Guilherme. Com 20 anos, no dia 27 de novembro de 1997, Guilherme se foi. Dois anos depois, no mesmo dia, Fábio também.
Ela morou com os gêmeos em Vitória. Mudou-se para Brasília. Voltou para Vitória. Nas duas cidades, os jovens demonstraram muita habilidade para esportes, apesar de pouco interesse para os estudos. Fábio se tornou um skatista revelação. Os irmãos também praticaram judô, natação, surfe. Sempre se destacaram.
“Meus filhos eram líderes desde pequenininhos. As melhores fichas de leitura. Mas eram muito agressivos. Eles começaram a não querer estudar muito. Em Brasília começaram os problemas de aprendizado. E eu achava que era porque eles eram vagabundos. Achei que era vagabundagem”.

A mãe percebeu um comportamento diferente, agressivo, em Fábio. O jovem passou a exibir um olhar vazio, distante. O comportamento foi prontamente associado ao uso de drogas. Guilherme já usava maconha, então não seria estranho se o irmão também utilizasse. Começou o cerco.

A agressividade e os comportamentos pouco ortodoxos se transformaram em uma crise psicótica. Mariza buscou apoio psiquiátrico para o filho. “A médica dizia que ele tinha indícios de esquizofrenia e que tinha 60% de chance do outro ter. O primeiro surto antes dos 20 anos não era um bom prognóstico. Não tive coragem de contar para ninguém. Nem chorava. Fiquei sentada na calçada olhando para o além e sinceramente preferi não acreditar”.

Enquanto a patologia de Fábio se agravava, Guilherme passou a usar mais maconha e também a se isolar. Antes de virar motivo de preocupação, passou a servir o exército. Guilherme se tornou recluso, distante do mundo e mais próximo da namorada.

“A situação do Fábio se agravou. Foi internado e voltou. Cheirou cola, usou cocaína uma vez. Eu sei disso porque eles me contavam tudo. Para uma pessoa com problemas mentais usar drogas é fatal”.

Diante dos problemas e da luta enfrentada com Fábio e com o afastamento de Guilherme, Mariza decidiu voltar para Vitória. Apartamento novo, vida nova. Em outubro ela chegou com Fábio. Guilherme viria dois meses depois, pois ainda precisava concluir os compromissos com o Exército Brasileiro.

Em Vitória, o gêmeo sem diagnóstico de patologia psicológica ficava muito nervoso. A namorada ficara em Brasília e iniciou-se um processo de culpa. Culpa por não ter estudado, culpa por querer casar e não enxergar um futuro, culpa por se considerar um fardo para a mãe.

“Um belo dia Guilherme se jogou de bicicleta contra um muro. Quando cheguei no hospital vi o olhar dele para o vazio. Ele estava em transe. Guilherme nunca teve nada disso. Ele saía do surto, olhava pra mim, beijava o chão e dizia: ‘mamãe, como eu pude fazer isso?’.

Guilherme passou a ter acompanhamento médico. Menos intenso que o do irmão. Mais remédio. A namorada veio para Vitória, ele fazia planos de estudar e no meio desse processo, o fim. “Ele estava dormindo comigo na minha cama, a namorada em outro quarto. Até hoje eu ouço minha voz, meu grito”.

Com 20 anos, no dia 27 de novembro de 1997, Guilherme se foi. Dois anos depois, no mesmo dia, Fábio também.

Com a dor de perder um filho somada à dor de cuidar de outro psicologicamente instável, Mariza enxergou o que chamou de véu preto. “Ali eu pensei que não fosse aguentar, porque ele era o ‘bom’, ele que me ajudava com o Fábio. Ele que falava ‘maninho, não faz isso’. Perder o filho é uma dor alucinante”.

“Eu não queria fazer nada, não queria levantar. Nisso Fábio chega perto de mim e fala: ‘por que você tá chorando? Eu tô vivo, você tem que ficar feliz’. E toda vez que me via triste não conseguia lidar, ficava agressivo. Vi que tinha que salvar o Fábio”.

Um policial foi até a casa de Mariza e, além de investigar o suicídio e fazer todos os processos necessários relativos ao ato, orientou a mãe. Os amigos ajudaram. A partir daí, foram mais dois anos. Anos muito difíceis. “Li tudo que se pode imaginar sobre suicídio. Acho que isso foi o que me permitiu continuar a viver uma vida normal. Foi uma coisa muito forte, precisava entender o que passava na cabeça dele. Li coisas técnicas, coisas dolorosas e com isso acho que me fortaleci como pessoa”.

Mariza voltou para a igreja, buscou auxílio espiritual e quando aconteceu com Fábio, o véu preto voltou a cair sobre a vida da mãe. Uma constatação. “Não consegui segurar esses meninos aqui”.

Com 22 anos, no dia 27 de novembro de 1999, Fábio se foi. Dois anos antes, no mesmo dia, Guilherme também.

Fotografia de Vitor Jubini

A dor não passa. Mariza recebeu o repórter em casa com a mãe recém-operada por um pequeno acidente doméstico, Mariza aguardava um prestador de serviço enquanto ajudava a mãe a caminhar – recomendações médicas – e, entre uma pequena tarefa e outra ela disse que a dor não passa.

Depois do ocorrido, algumas mães ligaram. Outros amigos queriam que ela fosse visitar. “Fiquei horas no telefone dizendo que elas ficariam bem. É importante entender, aceitar a decisão de cada um e não se culpar. A vida era deles, esse caminho era deles. A gente interfere a vida inteira e precisa de um ato desse para entender que eles não eram meus”.

Hoje Mariza chora menos, mas não significa que ela não chore mais. “Uma das piores coisas é fazer supermercado. Ver as coisinhas que eles gostavam”. Mariza lida com isso. Ri um tanto lembrando das coisas. Fala dos filhos. Fala com os filhos. Esse luto é pra sempre.

Fotografia de Vitor Jubini

"Será que a gente tem de morrer junto?"

* Neste relato usamos nomes fictícios para preservar a identidade dos participantes.

Eduardo era brilhante. Fazia filmes, tocava em banda, bebia, fumava e fazia tudo o que faz um universitário. De uma família até certo ponto excêntrica, como descreveu João, irmão mais novo de Eduardo, tudo era permitido. A relação de proximidade entre os membros da família era grande. A proximidade  não só entre eles, mas também com a depressão. Por conta dessa relação, quando foi a vez de Eduardo passar por momentos mais sombrios, o caso foi considerado normal. “Depressões a gente teve e venceu, pensamos: vamos lá!”, disse João numa manhã de calor forte.

A história narrada por João vem de uma trágica coincidência. o irmão atentou contra a própria vida no dia em que João produzia um documentário sobre o luto. Ele encontrou o corpo de Eduardo após voltar das gravações no cemitério.

“Ele fazia Economia, tinha banda, saía, estava feliz. Até que começou a ficar depressivo, começou a sentir dificuldade em fazer as coisas. Ele saiu da banda, meio que brigou. Tava brigando com os irmãos, com os pais e foi ficando uma situação muito densa”.

Nenhuma família espera enfrentar uma crise suicida. A família de Eduardo buscou ajuda, acompanhamento psicológico e psiquiátrico. “Ele estava na luta. Tinha esse acompanhamento, estava fazendo natação, fazendo atividades para não deixar a peteca cair. Mas ele estava mal. Mal. A gente via que ele não estava bem. Via que ele não estava se cabendo dentro dele”.

João e Eduardo faziam muitas coisas juntos. Uma delas era filmar, interesse em comum entre os dois. Antes de ir embora, Eduardo se deitou com João e perguntou se ele o amava. “Eu disse que sim, claro. E conversamos coisas lindas. Ele falou que as coisas mais lindas que ele tinha feito foram comigo. Ele ainda saiu. Foi para o samba”.

No outro dia, 2 de novembro, Dia de Finados, João sairia para gravar o documentário muito cedo. Antes de sair, ouviu a música do celular de Eduardo vindo do banheiro “Deve ter voltado tarde”. Passou a manhã no cemitério colhendo depoimentos emocionados para o filme.

Ao voltar, antes de se sentar à mesa com a família, decidiu chamar Eduardo. “Acho que ele já dormiu o suficiente”. Foi até o quarto. A porta estava fechada. No banheiro aberto, celular e caixa de som. “Achei que ele estivesse dormindo muito profundamente”. João decidiu dar a volta no quarto. Foi quando encontrou o irmão.

Fotografia: Fernando Madeira

“Quando eu cheguei na janela eu o vi. Morto. Sei lá. Você perde o chão. O mundo gira. Na hora eu fiquei tão em choque que eu só pensei no que eu tinha que fazer. Eu estava numa casa com mais três senhoras. Duas idosas. Eu tinha que tomar uma atitude. Eu virei tipo um robô de execução de tarefas. Liguei para o meu pai e meu irmão e disse que precisava deles urgente, ainda segurando as pontas. Quando eles chegaram foi que eu desabei. Eu comecei a chorar e foi o momento em que tudo caiu. Agora eu tinha auxílio emocional para lidar. Eu falei: o Eduardo está morto”.

Foi a hora em que a família toda ficou sabendo. A mãe desmaiou. Todos em choque. Ninguém acreditava. O primeiro pensamento depois do forte sentimento, segundo João, foi revisitar os porquês. “Nesse momento a gente pensa que a gente deu tanto carinho, tanto amor. Tinha briga, mas tinha liberdade. Liberdade sexual, religiosa”.

E no fim dos porquês da família, a constatação.  Ele escolheu.

“E aí a família entrou em colapso. Ficamos muito recolhidos. Tivemos um apoio gigante de todo mundo. Aí foi aquela loucura. Velório. Funeral. Tinha muitos amigos. Ele era um cara muito querido. Difícil, mas muito querido. Não falamos para ninguém e o velório lotou. Passado velório, choque, monte de amigos dormindo por semanas em casa pra gente não ficar sozinho, fomos doando as coisas dele. Cada um pegou uma lembrança e depois a gente percebe que a saudade é gostosa e vira potência. Cada um ficou com uma parte dele”.

Além de toda a carga emocional, João ainda tinha um documentário para tocar. De um assunto delicado, para além do recente em sua vida. O grupo disse que seria melhor não fazer. João não concordou. “Não. Vamos fazer esse tema. Fazer em homenagem ao meu irmão. Não só como homenagem a ele, mas como forma de ajudar quem passa por luto. Acho que foi a minha salvação de certa forma, foi algo que eu não imagino como teria sido sem isso. Escutei pessoas que acabaram de perder alguém ou que tinham perdido um ente querido há anos e fui entendendo que tudo é processo”.

Um processo muito difícil, muito duro e longo. Na entrevista, João falou e chorou. “A morte é muito pesada para a gente. A gente morre junto. Mas será que a gente tem que morrer junto?”, questionou.

Cifras ocultas pelo preconceito

No mundo, a cada 40 segundos uma pessoa comete suicídio, e a cada três segundos uma pessoa atenta contra a própria vida. Em 2012, cerca de 804 mil pessoas morreram em todo o mundo. No Brasil, o oitavo país em número absoluto, foram registradas 11.821 mortes, cerca de 30 por dia no ano de 2012. Desse número, 9.198 são homens e 2.623 mulheres. No país, o suicídio é a terceira causa de morte entre jovens, atrás apenas de acidentes de trânsito e homicídios. Os números publicados pela Associação Brasileira de Psiquiatria ainda chamam atenção para um grave fator. Os números brasileiros devem ser analisados com cautela em razão da grande variabilidade regional nas taxas, além da subnotificação. Ninguém fala sobre suicídio.

Apesar disso, o tema é discutido no Congresso Nacional há alguns anos. O Senado analisa o Projeto de Lei que obriga a notificação em até 72 horas das tentativas de suicídio atendidas pelos serviços públicos e privados de saúde. A PL 498/07 foi aprovado pela Câmara e passou para o Congresso como PLC 153/09.

Segundo o “Mapa da Violência 2014 – Os Jovens do Brasil”, do sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, da FLACSO (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais), entre 1980 e 2012, as taxas de suicídio no Brasil cresceram 62,5%.

Além disso, o Ministério da Saúde publicou uma portaria que obriga hospitais públicos e privados a informar os serviços municipais de saúde, em até 24 horas, sobre tentativas atendidas. Falar é importante para que as contas fechem e o suicídio seja retirado das sombras do estigma e da subnotificação.

O psiquiatra Neury José Botega, em seu livro “Crise Suicída – Avaliação e Manejo”, explica que o suicídio se insere como categoria de mortalidade ocasionada por causas externas, ou seja, é tratado como acidentes de trânsito, homicídios, guerras e conflitos civis.

Por algum tempo, a subnotificação acontecia propositalmente, tratando o suicídio como morte acidental (porque desta forma, ao alcance da conveniência, seria possível realizar um funeral e todo tipo de rito funeral, além de dirimir a culpa de familiares e permitir acesso ao seguro de vida pelos filhos e esposas).

Para ajudar os profissionais de saúde a determinar clinicamente o risco e estabelecer estratégias para reduzi-lo, a cartilha da Associação Brasileira dos Psiquiatras descreve os principais fatores de risco, sendo a tentativa prévia de suicídio o principal fator isolado a ser considerado. Pacientes que já tentaram uma vez têm de cinco a seis vezes mais chances de tentar novamente. A estimativa é de que 50% daqueles que tiraram a própria vida haviam tentado pelo menos uma vez.

O segundo fator considerado principal é a doença mental ou transtorno psiquiátrico. É comum entre os suicidas a presença de doença mental, muitas vezes não diagnosticada, frequentemente não tratada ou tratada de forma inadequada.

No entanto, são diversos os fatores de risco para a prática, tais como a desesperança, desespero, desamparo e impulsividade, sentimentos fortemente associados ao suicídio e que devem acender o sinal de alerta, principalmente entre os jovens. A impulsividade associada à desesperança e o abuso de substâncias é considerado particularmente letal.

A idade também representa um fator de risco, ao passo que os comportamentos suicidas entre jovens e adolescentes envolvem fatores complexos, tais quais humor depressivo, abuso de sustâncias, problemas emocionais, familiares e sociais, rejeição familiar, histórico de transtorno psiquiátrico, negligência e abuso físico e sexual na infância. Outro grupo de risco relacionado à idade é o de idosos, que passam por situações como perda de parentes (em destaque, o cônjuge); solidão; existência de doenças degenerativas e dolorosas, além da sensação de “peso morto”, de dar trabalho para familiares e pessoas próximas.

Os óbitos por suicídio também são relacionados ao gênero, na medida em que é possível, por meio das estatísticas, sendo que o número de mortes é três vezes maior entre homens do que entre mulheres. Entretanto, as tentativas são registradas, em média, três vezes mais frequentemente entre mulheres. O reforço ao papel de gênero associado ao homem, como força, independência e comportamentos de risco muitas vezes impede os homens de procurarem ajuda, o que agrava a solidão e o isolamento social, principais fatores associados ao suicídio no gênero masculino. Mulheres se matam menos por apresentarem redes sociais de proteção mais fortes.

Em estudos recentes, há evidências de que os conflitos relacionados à identidade sexual causem um risco maior de comportamento suicida, o que requer uma maior sensibilidade para estas questões.

Esses fatores de risco devem ser levados em conta na abordagem da pessoa com risco de suicídio, principalmente por parte do profissional da saúde, mas também pela família e pela sociedade. O potencial suicida apresenta queixas diferentes, o que torna importante saber ouvir a pessoa e entender seus fatores.

Toda pessoa que fala sobre suicídio tem risco em potencial e merece atenção especial. Isso desmistifica mais um arraigado fator gerado pelo preconceito, tabu e estigma de que “quem fala que vai se matar, não se mata”. Por impulsividade ou erro de cálculo na tentativa, a fatalidade acontece.

Fotografia: Vitor Jubini

Amigos que gostaríamos de nunca ter tido

“CVV, bom dia”. É assim que Vinicius atende ao telefone do Centro de Valorização da Vida, disponível por meio do número 141, durante quatro horas por semana. Vinicius é voluntário. No CVV de Vitória, ele é conhecido apenas pelo primeiro nome, como o são os outros voluntários.

“Se alguém liga numa crise, dizendo que está prestes a se matar, um voluntário preparado diz: eu sei que você está vivendo um momento muito difícil. Você gostaria de conversar sobre isso comigo?”. Vinicius chega 15 minutos antes do seu horário para se estabelecer e conversar com o voluntário que está deixando o turno. O mesmo acontece quando ele sai. Se um voluntário precisa conversar, ele recorre ao colega de contraturno e também tem reuniões mensais e bimestrais.

O Centro de Valorização da Vida atua há 53 anos no Brasil, 31 em Vitória. Com o objetivo de oferecer um apoio fraterno à pessoas que ligam ou procuram a organização. O atendimento não é realizado por profissionais, mas por voluntários que passam por treinamento e estudos para saber escutar e fornecer um ouvido para quem quer conversar e não tem ninguém.

O Centro de Valorização da Vida é uma instituição de referência na prevenção ao suicídio e oferece apoio emocional por telefone, chat, e-mail, VoIP, correspondência ou pessoalmente nos postos espalhados por todo o Brasil.

De maneira voluntária, outras instituições prestam apoio emocional e trabalham não só com prevenção, mas com a posvenção, ou seja, têm como alvo os sobreviventes, aqueles que sofreram de maneira muito próxima com o suicídio.

Em Vitória, há 10 anos, o grupo de Apoio a Perdas Irreparáveis (API), também com atuação em outros Estados, busca acolher pessoas enlutadas por diversos tipos de perdas. O enlutado busca apoio e suporte em encontros mensais e, por meio do compartilhar de suas experiências, também se torna apto a acolher e apoiar outros enlutados. Coordenadora do API em Vitória, Daniela Reis descreve o grupo como a afirmação: “Somos amigos que gostaríamos de nunca ter tido”.

A frase pode causar estranhamento num primeiro momento, mas traduz a profundidade dos novos vínculos estabelecidos apesar e a partir da morte de um ente querido. No livro “O Resgate da Empatia”, a terapeuta explica que por vezes, os vínculos e o apoio expandem-se para além das fronteiras das reuniões, aproximando enlutados e suas famílias.

“Por ser aberto, o grupo não faz nenhuma restrição quanto ao tipo de perda, ao contrário de algumas indicações de formação de grupos de apoio, franqueando o acolhimento aos enlutados por suicídio. A possibilidade de ter contato com a diversidade de lutos possibilita aos sobreviventes sentirem-se livres de estigma, observando a presença de culpa, vergonha, ‘ses’ em outros tipos de perda, podendo encontrar semelhanças e diferenças em cada depoimento”, descreve.

Diferente do API, o instituto Vita Alere tem como objetivo trabalhar diretamente com prevenção e posvenção. No site, o instituto explica que a “história do movimento de apoio aos sobreviventes começou em 1970, na América do Norte, com a fundação do primeiro grupo de apoio ao luto por suicídio, e, em 1972, o doutor Edwin Shneidman (1973) descreveu o conceito de posvenção, como a “prevenção para futuras gerações” (tradução nossa)”.

Em setembro existe a tentativa de trazer à superfície a discussão sobre o suicídio através do movimento “Setembro Amarelo”, que acompanha o “Outubro Rosa” e o “Novembro Azul” na tentativa de colorir os meses com debates, estudos e consciência. A posvenção também tem dia. Todo dia 20 de novembro acontece o Dia Internacional de Sobreviventes do Suicídio. O instituto Vita Alere procura educar e lançar luz aos enlutados, que tratam como sobreviventes.

Além de disponibilizar uma bibliografia que funciona como roteiro de leitura para absorver de maneira mais branda o violento impacto do suicídio de alguém próximo, o instituto concentra, num espaço acessível, outros grupos que podem ajudar àqueles que passam pelo mesmo período escuro a buscarem um caminho.

Falar é importante e, a partir dessa reflexão, todos os grupos que pretendem apoiar e auxiliar pessoas com qualquer desconforto emocional e psíquico fazem parte do universo de prevenção, como os Alcoólicos Anônimos e Narcóticos Anônimos.

Falar para todas as pessoas envolvidas. Das mais fortes às consideradas mais frágeis. Nesta categoria é possível incluir as crianças. Se para adultos, com as vidas em um rumo determinado, a ruptura causada pelo suicídio de alguém próximo é um grande baque, o que deve ser na cabeça de uma criança? Pensando nisso, a psicóloga Karen Scavacini tratou delicadamente do tema através de um livro infantil. “E agora?” é um livro para crianças lidando com o luto por suicídio.

 

 

 

 

Quando falar prejudica, como falar?

Como acompanhamos até aqui, falar sobre suicídio é de suma importância. E tão importante quanto falar é saber ouvir. Abrir-se à possibilidade de se tornar o ombro e o ouvido de alguém que precisa desabafar. Ser o apoio de alguém e exercer empatia a parentes, amigos e pessoas que passam por um sentimento tão profundo e persistente que, por vezes, parece não ter fim.

No entanto, entre ouvir e falar, é possível que a comunicação se torne turva e o serviço acabe se tornando um incentivo para quem pensa em por fim às possibilidades.

O escritor alemão Goethe publicou, em 1774, a obra Die Leiden des Jungen Werther (Os Sofrimentos do Jovem Werther). Na novela, o protagonista dá fim a sua própria vida após um amor mal sucedido. Logo após a publicação, a Europa encarou vários relatos de jovens que cometeram suicídio da mesma forma que Werther. O fenômeno deu origem ao termo “Efeito Werther”, que designa a imitação de suicídios na literatura técnica.

Outro escritor, desta vez no século XIX nos Estados Unidos, publicou Final Exit (Solução Final – Praticabilidade da Auto-Eliminação). Após a obra de Derek Humphry, houve aumento nos suicídios registrados em Nova York através dos métodos descritos no livro. A tradução e publicação da obra na França também acentuou o número de suicídios no país. A partir daí, outros estudos direcionados provaram que o grau de publicidade dado a uma história de suicídio está diretamente relacionado ao número de suicídios subsequentes, como acontece em casos de suicídio envolvendo celebridades.

Ao verificar a gravidade da relação, a Organização Mundial da Saúde definiu um manual para profissionais da mídia, que faz parte de uma série de manuais destinados a grupos sociais e profissionais específicos para o SUPRE (Suicide Prevention Program ou  Programa de Prevenção ao Suicídio, em tradução livre).

O psiquiatra Neury José Botega transforma essa questão em números, explicando que a imprensa às vezes cruza a linha entre o “interesse público e o interesse de um público sedento pelo espetáculo da violência”. Segundo o profissional, infelizmente há um exemplo nefasto ocorrido recentemente. O exemplo de Botega aborda justamente o Espírito Santo, onde a Terceira Ponte – que liga a capital Vitória à cidade de Vila Velha – acaba por se tornar um ícone quanto à triste prática.

“Até 2011, havia, em média, dois suicídios por ano na Terceira Ponte (…) Desde essa época, os casos de suicídio passaram a ser mais divulgados por jornais, televisão, rádios, portais de notícias e redes sociais virtuais. Ocorreu, então, que o número de suicídios triplicou nesse ano e nos dois anos seguintes. Mas o pior estaria por vir: ao longo de 2014, foram registrados 12 suicídios ocorridos na Terceira Ponte. Aumentou, também o número de tentativas de suicídio”, descreve o psiquiatra.

Fotografia: Vitor Jubini

Precisamos falar sobre a morte

relato do repórter.

Aos dezessete anos eu perdi minha mãe. Não foi por suicídio. Ela passou algum tempo no hospital. Muitas complicações médicas. Era época de vestibular. Eu já não tinha pai e era criado junto aos meus avós. Sempre fui muito próximo deles. A minha mãe morreu. Foi duro e eu tive problemas. Alguns mais brandos, outros tão sérios quanto os abordados nesta matéria.

Todos em casa ficamos consternados. Tínhamos problemas. Cada um assumiu uma responsabilidade diferente. O assunto era desconversado. A morte é um assunto desconversado. Acho que desde essa época meu avô lutava contra um câncer. Ninguém falou a palavra câncer em voz alta na minha casa desde o começo do tratamento até hoje, quatro anos depois da morte dele. Quando eu, ainda atordoado por um luto mal resolvido e cheio de culpa, perguntava o que vovô tinha, diziam que era “doença ruim”. Que doença é boa? A primeira vez que ouvi que meu avô tinha câncer foi através de um sussurro de uma de minhas tias. Na verdade eu nem ouvi. Me esforcei para fazer a leitura labial da palavra. CAN-CÊR.

A escritora estadunidense Susan Sontag é responsável pela obra “Metáforas da doença”, publicada após a luta e a vitória sobre um câncer no seio. No livro, Sontag descreve a tuberculose como a morte romântica, no século 19. Segundo a escritora, o câncer é a morte “suja” que simboliza o século 20.

Uma das formas de contar a história do ser humano é observando como cada sociedade, em épocas diferentes, enfrenta o fim. O historiador francês Philippe Ariès, já citado nesse material, mostrou como, no século 20, a morte se tornou interdita, assunto proibido e mórbido.

Mór.bi. do. a. 1. Ref. a doença; PATOLÓGICO 2. Prejudicial à saúde; que causa doenças; 3. Que tem caráter de doença (pessimismo mórbido); DOENTIO

Mesmo que a morte não tenha sido responsável pelo fim, “A Morte” enquanto assunto, se tornou doença. Por que falar da morte, esse mal contagioso?

Em um novo século, uma nova abordagem parece surgir. As redes sociais e a excessividade de compartilhamentos tornou o Facebook o endereço dos próximos velórios. Perfis de quem já morreu se tornam memoriais e os pêsames, pesares e exéquias são produzidos e reproduzidos virtualmente. A morte saiu dos mausoléus e passou a ocupar a internet. Acho que estamos aprendendo a falar sobre morte. É preciso falar sobre morte abertamente, tirando-a do plano dos sussurros.

Referências

  • O Resgate da Empatia: Suporte Psicológico ao Luto Não Reconhecido. Organizadora: Gabriela Casellato
  • Crise Suicída: Avaliação e Manejo. Neury José Botega
  • O Demônio do Meio-Dia: Uma Anatomia da Depressão. Andrew Solomon
  • A Complexidade do Suicídio: Há Prevenção Possível. Daniela Reis e Silva
  • E a Vida Continua… O Processo de Luto dos Pais Após o Suicídio de Um Filho. Daniela Reis e Silva
  • Falando Abertamente Sobre Suicídio. Cartilha do Centro de Valorização da Vida
  • Manual de Prevenção ao Suicídio. Ministério da Saúde

participaram desta reportagem

fotografias: vitor jubini e fernando madeira. artes: wing costa e edson de melo. revisão gráfica: edson de melo. edição: aglisson lopes e rodrigo lira. revisão profissional: daniela reis e silva