Mariza é mãe de gêmeos univitelinos. Fábio e Guilherme. Com 20 anos, no dia 27 de novembro de 1997, Guilherme se foi. Dois anos depois, no mesmo dia, Fábio também.
Ela morou com os gêmeos em Vitória. Mudou-se para Brasília. Voltou para Vitória. Nas duas cidades, os jovens demonstraram muita habilidade para esportes, apesar de pouco interesse para os estudos. Fábio se tornou um skatista revelação. Os irmãos também praticaram judô, natação, surfe. Sempre se destacaram.
“Meus filhos eram líderes desde pequenininhos. As melhores fichas de leitura. Mas eram muito agressivos. Eles começaram a não querer estudar muito. Em Brasília começaram os problemas de aprendizado. E eu achava que era porque eles eram vagabundos. Achei que era vagabundagem”.
A mãe percebeu um comportamento diferente, agressivo, em Fábio. O jovem passou a exibir um olhar vazio, distante. O comportamento foi prontamente associado ao uso de drogas. Guilherme já usava maconha, então não seria estranho se o irmão também utilizasse. Começou o cerco.
A agressividade e os comportamentos pouco ortodoxos se transformaram em uma crise psicótica. Mariza buscou apoio psiquiátrico para o filho. “A médica dizia que ele tinha indícios de esquizofrenia e que tinha 60% de chance do outro ter. O primeiro surto antes dos 20 anos não era um bom prognóstico. Não tive coragem de contar para ninguém. Nem chorava. Fiquei sentada na calçada olhando para o além e sinceramente preferi não acreditar”.
Enquanto a patologia de Fábio se agravava, Guilherme passou a usar mais maconha e também a se isolar. Antes de virar motivo de preocupação, passou a servir o exército. Guilherme se tornou recluso, distante do mundo e mais próximo da namorada.
“A situação do Fábio se agravou. Foi internado e voltou. Cheirou cola, usou cocaína uma vez. Eu sei disso porque eles me contavam tudo. Para uma pessoa com problemas mentais usar drogas é fatal”.
Diante dos problemas e da luta enfrentada com Fábio e com o afastamento de Guilherme, Mariza decidiu voltar para Vitória. Apartamento novo, vida nova. Em outubro ela chegou com Fábio. Guilherme viria dois meses depois, pois ainda precisava concluir os compromissos com o Exército Brasileiro.
Em Vitória, o gêmeo sem diagnóstico de patologia psicológica ficava muito nervoso. A namorada ficara em Brasília e iniciou-se um processo de culpa. Culpa por não ter estudado, culpa por querer casar e não enxergar um futuro, culpa por se considerar um fardo para a mãe.
“Um belo dia Guilherme se jogou de bicicleta contra um muro. Quando cheguei no hospital vi o olhar dele para o vazio. Ele estava em transe. Guilherme nunca teve nada disso. Ele saía do surto, olhava pra mim, beijava o chão e dizia: ‘mamãe, como eu pude fazer isso?’.
Guilherme passou a ter acompanhamento médico. Menos intenso que o do irmão. Mais remédio. A namorada veio para Vitória, ele fazia planos de estudar e no meio desse processo, o fim. “Ele estava dormindo comigo na minha cama, a namorada em outro quarto. Até hoje eu ouço minha voz, meu grito”.
Com 20 anos, no dia 27 de novembro de 1997, Guilherme se foi. Dois anos depois, no mesmo dia, Fábio também.
Com a dor de perder um filho somada à dor de cuidar de outro psicologicamente instável, Mariza enxergou o que chamou de véu preto. “Ali eu pensei que não fosse aguentar, porque ele era o ‘bom’, ele que me ajudava com o Fábio. Ele que falava ‘maninho, não faz isso’. Perder o filho é uma dor alucinante”.
“Eu não queria fazer nada, não queria levantar. Nisso Fábio chega perto de mim e fala: ‘por que você tá chorando? Eu tô vivo, você tem que ficar feliz’. E toda vez que me via triste não conseguia lidar, ficava agressivo. Vi que tinha que salvar o Fábio”.
Um policial foi até a casa de Mariza e, além de investigar o suicídio e fazer todos os processos necessários relativos ao ato, orientou a mãe. Os amigos ajudaram. A partir daí, foram mais dois anos. Anos muito difíceis. “Li tudo que se pode imaginar sobre suicídio. Acho que isso foi o que me permitiu continuar a viver uma vida normal. Foi uma coisa muito forte, precisava entender o que passava na cabeça dele. Li coisas técnicas, coisas dolorosas e com isso acho que me fortaleci como pessoa”.
Mariza voltou para a igreja, buscou auxílio espiritual e quando aconteceu com Fábio, o véu preto voltou a cair sobre a vida da mãe. Uma constatação. “Não consegui segurar esses meninos aqui”.
Com 22 anos, no dia 27 de novembro de 1999, Fábio se foi. Dois anos antes, no mesmo dia, Guilherme também.
A dor não passa. Mariza recebeu o repórter em casa com a mãe recém-operada por um pequeno acidente doméstico, Mariza aguardava um prestador de serviço enquanto ajudava a mãe a caminhar – recomendações médicas – e, entre uma pequena tarefa e outra ela disse que a dor não passa.
Depois do ocorrido, algumas mães ligaram. Outros amigos queriam que ela fosse visitar. “Fiquei horas no telefone dizendo que elas ficariam bem. É importante entender, aceitar a decisão de cada um e não se culpar. A vida era deles, esse caminho era deles. A gente interfere a vida inteira e precisa de um ato desse para entender que eles não eram meus”.
Hoje Mariza chora menos, mas não significa que ela não chore mais. “Uma das piores coisas é fazer supermercado. Ver as coisinhas que eles gostavam”. Mariza lida com isso. Ri um tanto lembrando das coisas. Fala dos filhos. Fala com os filhos. Esse luto é pra sempre.